Descrição de chapéu The New York Times

Cidade na Bélgica abriga pacientes psiquiátricos em lares de famílias há 800 anos

Geel escolhe há séculos lidar com atendimentos de saúde mental por meio do acolhimento

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Matina Stevis-Gridneff Koba Ryckewaert
Geel (Bélgica) | The New York Times

Um ciclo doloroso se repete e define os 53 anos de vida de Iosif: trauma, colapso mental, internação psiquiátrica. Desde a Romênia, seu país de origem, passando por uma tentativa fracassada de obter asilo na Bélgica, um divórcio posterior e problemas financeiros, a condição mental de Iosif tem marcado crises em sua vida que frequentemente fugiram de seu controle.

Mas agora, sentado à mesa de uma sala de jantar por cujas portas largas de vidro se vê um bosque, ele parecia em paz. Iosif falou de suas tarefas domésticas diárias (alimentar o burro, lavar a louça), seus passatempos favoritos (ler a Bíblia, fazer supermercado) e suas preocupações (gastar demais, esquecer-se de tomar seus remédios).

A Igreja de Santa Dimpna, padroeira das doenças mentais, na Bélgica
A Igreja de Santa Dimpna, padroeira das doenças mentais, na Bélgica - Ilvy Njiokiktjien - 22.fev.23/The New York Times

Da sala de estar vem o som de um desenho animado. Etty, 71, e Luc Hayen, 75, estavam fascinados, assistindo a um programa infantil em que um camundongo vivia uma aventura. O gato da casa cochilava no sofá. Todos os três vivem com Ann Peetermans, esteticista de 47 anos, e seu filho adolescente, num arranjo de longo prazo pelo qual pessoas com problemas mentais vivem com famílias locais.

É um enfoque no atendimento psiquiátrico que, como mostram arquivos históricos, é seguido em Geel desde o século 13. Em meados do século 14 os moradores da cidade começaram a construir uma igreja para Santa Dimpna, a padroeira das pessoas com doenças mentais, e peregrinos passaram a viajar para lá. Eles se hospedavam nas casas de agricultores, trabalhando na terra ao lado de suas novas famílias.

A igreja e a tradição seguem firmes. No final do século 19, havia quase 2.000 pessoas de fora vivendo entre os geelianos, como os habitantes locais se descrevem. Hoje a cidade de 41 mil habitantes em Flandres, parte da Bélgica onde se fala holandês, tem 120 pessoas vivendo com moradores.

Geel tornou-se ao mesmo tempo um exemplo de um paradigma particular de atendimento psiquiátrico e uma exceção frequentemente encarada com desconfiança ao longo dos séculos (incluindo pelo New York Times, que em manchete de 23 de março de 1891 descreveu a cidade como "uma colônia onde loucos vivem com camponeses" e que tem "produzido sofrimento e resultados perversos").

As desconfianças só cresceram à medida que a abordagem de Geel foi se chocando com o campo médico crescente da psiquiatria. Em tempos mais recentes, porém, a cidade passou a ser encarada sob outra ótica, como exemplo de uma alternativa mais humana à institucionalização ou ao descaso com que pessoas com doenças mentais às vezes são tratadas em outros lugares.

"Sempre houve controvérsia em torno de como devem ser tratadas as pessoas ‘perturbadas’ ou ‘excêntricas’", escreveu o neurologista Oliver Sacks no prefácio do livro "Geel Revisited". "Elas devem ser tratadas como doentes ou possivelmente perigosas e ser internadas em clínicas? Ou existe uma chance de que uma abordagem mais humanitária e social, que procure reintegrá-las à vida familiar e comunitária, uma vida de amor e trabalho, também tenha bons resultados?"

Para Sacks, que havia visitado Geel, a resposta estava em aceitar a doença mental como individualidade, não em estigmatizar a deficiência. Ele concluiu que Geel comprova que "mesmo pessoas que podem parecer doentes incuráveis têm o potencial de viver uma vida plena, com dignidade, amor e segurança".

O cuidado como identidade

Quando Ann Peetermans era criança e adolescente em Geel, sua tia acolhia hóspedes com distúrbios psiquiátricos. Isso era natural para os geelianos, conta ela. Há sete anos, quando ela própria pensou em aderir à tradição, não foi uma questão de se ela receberia hóspedes em sua casa, mas de quantos.

"Se eu pudesse ter quatro, eu gostaria, mas três é o máximo de pessoas que eles deixam viver com uma família", diz. "A realidade é que gosto de ter muita gente em volta."

Hayen está na terceira casa de acolhida em quase 30 anos e diz que se dá bem com os outros hóspedes, Etty ("uma boa mulher") e Iosif ("um verdadeiro gentleman"). "Tenho uma vida maravilhosa aqui", conta, entusiasmado. "Porque gosto de liberdade, como quase todo o mundo." Ele contou que seu próximo plano é conseguir uma bicicleta de segunda mão para ir até o centro de atividades ao lado do hospital psiquiátrico, para curtir seus passatempos dos dias úteis.

O mercado semanal em Geel, na Bélgica
O mercado semanal em Geel, na Bélgica - Ilvy Njiokiktjien - 18.fev.23/The New York Times

O New York Times ouviu e fotografou hóspedes e suas famílias de acolhimento em conformidade com suas vontades, e um psicólogo acompanhou as jornalistas ao longo da reportagem.

Desde a década de 1860, Geel possui um hospital psiquiátrico público, que funciona como a âncora e a rede de segurança do programa. O psicólogo Wilfried Bogaerts conta que os pacientes que entram para o programa de acolhimento são escolhidos não tanto em função do diagnóstico, mas da estabilidade de sua condição. Os hóspedes incluem pessoas com esquizofrenia ou outras psicoses graves, mas que se adaptaram a um tratamento e conseguem viver bem em uma família.

Os potenciais hóspedes são encaminhados a famílias que passaram por um processo de triagem e tiveram suas casas aprovadas para acolher hóspedes. O diagnóstico nunca é revelado à família de acolhimento, a não ser que o hóspede opte por isso. Em vez disso, os psicólogos responsáveis preparam as famílias para o tipo de comportamento previsto, o regime medicamentoso e os sinais de alerta que devem ser notificados prontamente.

Um elemento crucial à confiança que fundamenta o arranjo é a disponibilidade de profissionais médicos responsáveis 24 horas por dia no hospital. "O atendimento de acolhida é atendimento psiquiátrico", diz Bogaerts. "Todos os profissionais que se encontram em um hospital psiquiátrico comum estão envolvidos no atendimento."

O Estado belga paga às famílias de acolhida um soldo diário de € 23 a € 28 por hóspede (R$ 126 a R$ 153). Ao que tudo indica, o valor é insuficiente. E o programa vem encolhendo nos últimos anos.

A comunidade local e o hospital estão tentando reverter essa tendência. A Bélgica recentemente encaminhou um pedido para que a iniciativa de acolhimento de Geel seja reconhecida como "patrimônio cultural imaterial" pela Unesco. E os líderes do programa lançaram uma campanha de divulgação para persuadir mais famílias a considerar a possibilidade de acolher pessoas.

"É importante que meus netos, por exemplo, aprendam a conviver com pessoas com essas condições", diz Greet Vandeperre, 66, que lidera uma organização comunitária que representa as famílias de acolhida, os hóspedes, o hospital, a cidade e a polícia.

 Greet Vandeperre, 66, que lidera uma organização que representa as famílias de acolhida, os hóspedes, o hospital, a cidade e a polícia
Greet Vandeperre, 66, que lidera uma organização que representa as famílias de acolhida, os hóspedes, o hospital, a cidade e a polícia - Ilvy Njiokiktjien - 14.fev.23/The New York Times

A "Geel Vertical" do Harlem

A carreira de décadas de Vandeperre na polícia de Geel oferece insights sobre perguntas frequentemente feitas em relação à experiência da cidade: essa abordagem é segura? E será que o paradigma de Geel só pode existir em Geel?

Na cidade, policiais frequentemente se deparam com hóspedes comportando-se de modo estranho em público ou mesmo infringindo as leis. Mas, devido à cultura de acolhimento, os agentes sabem como acalmar a situação e sabem que é preciso ligar para o hospital psiquiátrico imediatamente.

Essa abordagem difere do que é feito nos EUA e em outros países, onde chamar a polícia pode ser a primeira reação das pessoas diante de alguém que está passando por uma crise mental. Em muitas situações em que a polícia se envolve e na qual os policiais são insuficientemente treinados, os resultados podem ser violentos e mesmo mortais.

Ellen Baxter é uma das pessoas que pensam que elementos fundamentais da abordagem seguida em Geel podem ser reproduzidos. Ela passou os últimos 35 anos tentando recriá-la em Nova York.

Fundadora e diretora da Broadway Housing Communities, entidade beneficente de Nova York que trabalha com habitação, ela tinha acabado de concluir a faculdade em 1975, com especialização em psicologia, quando foi passar um ano em Geel para aprender mais sobre o programa de acolhimento. Voltou a Nova York e começou a levantar fundos para criar edifícios onde pessoas com transtornos psiquiátricos pudessem viver em comunidades.

O projeto mais recente, no bairro de Sugar Hill, no Harlem, é um que, para Baxter, guarda mais semelhanças com uma "Geel vertical". O complexo abriga famílias e adultos que vivem sozinhos, alguns deles com doenças mentais e muitos outros que não têm esses problemas. O complexo inclui uma creche e um museu que atrai pessoas de fora. Todo o mundo sabe quem é todo mundo.

"São necessários dois elementos: um bom design e tempo", diz Baxter. "A vida passa a girar mais em torno das questões pragmáticas do dia a dia. Acontecem reveses; pessoas morrem, bebês nascem. A convivência em uma comunidade faz emergir valores: não se descartam os idosos ou as pessoas mentalmente doentes ou deficientes."

Tradução de Clara Allain

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