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Diogo Schelp

Lula mente ao transformar reaproximação da Venezuela em endosso para ditadura

Ser pragmático e retomar diálogo não significa que se deve negar abusos e desinformar a população brasileira

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Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor-executivo da Veja. É mestre em Relações Internacionais pelo IRI-USP

"Quem acha que é imprescindível, insubstituível, começa a nascer um ditador. Então se Daniel Ortega está errando, o povo da Nicarágua que puna Daniel Ortega, se [Nicolás] Maduro está errando, o povo que puna", disse Lula em outubro do ano passado durante debate organizado por Folha, TV Cultura e Band com o então presidente Jair Bolsonaro (PL), que havia lhe questionado sobre sua amizade com governantes autoritários da América Latina.

O nível de sinceridade nas palavras do candidato Lula era próximo de zero, como comprovam as mais recentes declarações do agora presidente Lula.

Lula conversa com o líder venezuelano, Nicolás Maduro, no Palácio do Itamaraty - Pedro Ladeira/Folhapress

Em pronunciamento conjunto após uma reunião com Maduro em Brasília, nesta segunda-feira (29), Lula foi muito além do que era necessário e moralmente aceitável para marcar a reaproximação diplomática do Brasil com a Venezuela, chegando ao ponto de endossar a ditadura chavista.

Quando disse a Maduro que achava "a coisa mais absurda do mundo as pessoas que defendem a democracia negarem que você era presidente da Venezuela, tendo sido eleito pelo povo", Lula cometeu aquele pecado que costuma atribuir à oposição: desinformar.

Pessoas que defendem a democracia, Lula deveria saber, questionam a legitimidade de Maduro como presidente porque, entre outros motivos, ele está há dez anos no poder sem eleições justas e não dá mostras de querer largar o osso; porque no país não há efetiva independência entre os Poderes; e porque seu regime oprime e persegue opositores e jornalistas, inclusive com violações de direitos humanos relatadas por comissão independente da ONU que incluem tortura e violência sexual.

Não há dúvida de que a decisão, tomada pelo Brasil e por dezenas de outros países democráticos, de reconhecer como presidente interino do país o opositor Juan Guaidó (escolhido em 2019 para o posto por uma Assembleia Nacional desprovida de poderes, depois de uma vitória eleitoral fraudulenta de Maduro), não serviu ao propósito de colocar a Venezuela no caminho da democracia.

Diante do fracasso dessa estratégia diplomática, retomar as relações com a Venezuela e com quem detém o poder de fato no país era o correto a fazer. Mas ser pragmático e retomar o diálogo com o governo de um país vizinho, buscando a cooperação em áreas de interesse mútuo, não significa que se deve negar os abusos e até mentir para a população brasileira sobre o real caráter do governo de Maduro.

Não é por "preconceito contra a Venezuela", como disse Lula, que sociais-democratas e países europeus colocam em dúvida a legitimidade do regime chavista. Tampouco se pode resolver os problemas da Venezuela com uma simples construção de narrativa, como sugeriu Lula a Maduro: "Acho que cabe à Venezuela mostrar a sua narrativa, para que possa efetivamente fazer pessoas mudarem de opinião. É preciso que você construa a sua narrativa, e eu acho que, por tudo que conversamos, a sua narrativa vai ser melhor do que a narrativa que eles têm contado contra você."

A repressão política promovida por Maduro não é narrativa, é um fato.

Estaria o presidente brasileiro se oferecendo para atuar como marqueteiro de Maduro? Não seria a primeira vez que ele demonstra interesse em ajudar na perpetuação de governos chavistas: em 2012, a campanha de reeleição de Hugo Chávez contou com o marketing político de João Santana, por indicação de Lula.

O presidente Lula desinforma também quando afirma que as péssimas condições econômicas da Venezuela são "culpa dos Estados Unidos, que fizeram um bloqueio extremamente exagerado", acrescendo o absurdo retórico de que "bloqueio é pior do que uma guerra".

Tudo bem ser contra sanções e argumentar que elas não servem para atingir os objetivos esperados, mas a miséria em que vive o povo venezuelano é, na realidade, culpa de duas décadas de políticas desastrosas adotadas primeiro por Chávez e depois por Maduro e que tiveram como efeito derrubar a produção venezuelana em praticamente todos os setores, aumentando a dependência do petróleo e destruindo empregos. O desastre, na forma de inflação e desabastecimento de produtos, começou antes mesmo de Maduro assumir o poder com a morte de Chávez, em 2013.

As falas de Lula depois do encontro com Maduro foram na direção contrária de uma reaproximação bilateral bem calibrada, tirando a Venezuela do isolamento, mas evitando o alinhamento político —e talvez até alertando, diplomaticamente, para os riscos de um líder se acreditar "imprescindível, insubstituível". O que os brasileiros e o mundo viram, em vez disso, foi Lula recorrendo à desinformação para defender uma ditadura.

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