Entrevista de Zelenski à Folha levou quase um ano para sair do papel

Repórter Patricia Campos Mello relata percurso até falar com presidente da Ucrânia e o que viu no país em guerra

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São Paulo

O escritório de Volodimir Zelenski parece mais um bunker do que um palácio presidencial. Cercado de sacos de areia e muros reforçados, o local, em Kiev, é onde chefes de Estado e de governo são recebidos.

Foi lá que o líder da Ucrânia recebeu a Folha, em 29 de maio, ao lado de seis jornalistas latino-americanos, de México, Colômbia, Argentina, Uruguai, Chile e Nicarágua. Por motivos de segurança e da agenda volátil do presidente de um país em guerra, a entrevista não estava confirmada até o último minuto.

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, concede entrevista a veículos de impresa da América Latina, no palácio presidencial, em Kiev
O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, concede entrevista a veículos de impresa da América Latina, no palácio presidencial, em Kiev - Oleksandr Popenko/Public Interest Journalism Lab/Divulgação

E, mesmo quando o sinal verde veio, a conversa teve de ser adiada em pouco mais de uma hora devido a uma série de mísseis lançados pela Rússia. Os moradores de Kiev já estão habituados aos alertas –e às explosões– durante a madrugada. Nos primeiros dois dias em que estive na Ucrânia, foram interceptados mais de 60 drones e quase 40 mísseis russos em Kiev, segundo o governo ucraniano.

Mas dessa vez era diferente. Moscou lançava mísseis, alguns dos quais balísticos —detectados com menos antecedência—, no final da manhã. Corremos para o metrô, o abrigo antiaéreo mais usado pelos kievitas. Na estação lotada, esperamos a sinalização de que poderíamos sair do bunker improvisado.

Perto do palácio presidencial, passamos pela primeira das cinco checagens de segurança e verificações de passaportes. Dentro do prédio, fomos informados de que só poderíamos levar para a sala da entrevista os blocos de anotações. Celulares, bolsas, gravadores e até canetas ficariam em um guarda volumes.

Entrevista sem caneta? "Deixamos ótimas canetas para vocês em cima da mesa", disse um funcionário. Uma das preocupações dos ucranianos é a possibilidade de a Rússia rastrear o sinal dos celulares para mirar o presidente. Em várias instalações militares, é preciso desligar o geolocalizador dos aparelhos.

Zelenski nos recebeu com seu look habitual: camiseta e calça militares. Foi por vezes irônico, mas nunca descortês ao longo de 1 hora e 40 minutos de uma entrevista que levou quase um ano para sair do papel.

Em junho de 2022, enquanto eu passava uma temporada como pesquisadora associada na Universidade Columbia, em Nova York, conheci o historiador Timothy Snyder, professor de Yale especializado em União Soviética, Rússia e Ucrânia e autor de vários livros, como "Sobre a Tirania" (Companhia das Letras).

Snyder me apresentou à jornalista ucraniana Natalia Gumeniuk, à frente do Public Interest Journalism Lab (PIJL) ao lado do escritor Peter Pomerantsev e da jornalista Angelina Kariakina. Em parceria com a Universidade Johns Hopkins e o Instituto de Pesquisas Sociais de Kharkiv, o PIJL pesquisa desinformação e polarização e documenta os efeitos da anexação da Crimeia e da Guerra da Ucrânia.

Gumeniuk queria levar um grupo de jornalistas da América Latina para fazer reportagens na Ucrânia, uma vez que os veículos de mídia desses países tinham muito menos repórteres cobrindo a guerra in loco.

Eu precisava aprender muito sobre a Ucrânia antes de ir. A maior parte da minha experiência ao cobrir conflitos foi no Oriente Médio, na África e na Ásia –estive algumas vezes na Síria, no Iraque, na Líbia, no Quênia —na fronteira com a Somália—, no Afeganistão, na Turquia e no Líbano. Passei a ler livros sobre a história da Ucrânia e as relações com a Rússia e a acompanhar mais de perto o noticiário sobre a guerra.

Alguns meses após falar com Gumeniuk, voltei ao Brasil e mergulhei na cobertura da eleição presidencial, e a ideia da viagem ficou dormente. Só em março ela voltou a entrar em contato. A guerra se arrastava havia mais de um ano, e dezenas de milhares de pessoas já tinham sido mortas.

Estivemos em Kiev, Butcha, Kharkiv, Izium e Kramatorsk. Algumas dessas cidades já estiveram sob ocupação russa e outras estão muito próximas do front. Todas exibem cicatrizes da guerra, seja em valas comuns ou em prédios e escolas destruídas. O som de mísseis e alarmes antiaéreos é constante.

Foram dez dias de viagem, longe do tempo suficiente para entender a complexidade do conflito. Mas o curto período permitiu ver de perto como a guerra destrói as perspectivas de milhões de civis. Espero ter ajudado a dar um pouco de humanidade aos relatos que lemos e vemos todos os dias —mas que por vezes não conseguem tornar a guerra palpável para pessoas consumidas por suas rotinas.

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