Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Alertas de ataques aéreos desfazem ilusão de normalidade em Kiev

Ucranianos têm cerca de 5 minutos para se esconderem de projéteis, mas já se acostumaram a sons de mísseis e drones

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Kiev

Um ataque maciço de mísseis russos no centro de Kiev na manhã desta segunda-feira (29) desfez qualquer ilusão de normalidade na capital da Ucrânia. Os moradores já estão habituados a serem despertados de madrugada com alertas antiaéreos. Só nas últimas duas noites, o governo ucraniano afirmou ter interceptado mais de 60 drones e quase 40 mísseis.

Mas, desta vez, a Rússia alvejou a capital às 11h45 (horário local), com mísseis que deixaram destroços em chamas espalhados pela cidade, levaram os moradores a correrem para se abrigar em estações de metrô e crianças a fugirem gritando, assustadas com o barulho das explosões dos mísseis interceptados por defesas aéreas.

Ucranianos se abrigam em uma estação de metrô no centro de Kiev durante ataque russo - Serguei Supinski/AFP

O cenário era totalmente diferente no domingo (28), quando se comemorou o Dia de Kiev, efeméride da fundação da cidade. Centenas de jovens enchiam bares e cafés e aproveitavam o dia de sol da primavera ucraniana para tomar cerveja e bater papo com amigos. A cena poderia se dar em qualquer outra capital europeia, não fossem as placas em cirílico e as lembranças esparsas da guerra que já dura 15 meses.

Na frente da prefeitura de Kiev, um cartaz grande com uma caricatura do presidente da Rússia, Vladimir Putin, com um uniforme de presidiário onde se lê a palavra "huylo" (em ucraniano, palavra obscena que significa pênis e tem sido usada para insultar o líder do país invasor). Na caricatura, o russo está sendo julgado por aliados vestidos de juízes, como Ievguêni Prigojin, chefe do mercenário Grupo Wagner —que tem aumentado o tom das críticas contra o alto escalão da Defesa de Moscou.

Não muito longe dali, dezenas de pessoas passavam ao lado dos veículos militares russos semidestruídos que estão em exibição na praça Mikhailivska, a caminho de restaurantes. Por trás da calma ilusória, está uma cidade que teve de aprender a viver sob ameaça constante de bombardeio.

A única maneira de chegar a Kiev hoje é por terra, já que os aeroportos estão fechados em decorrência da guerra. Estão frescas as memórias do avião da Malaysia Airlines que foi derrubado em 2014 no leste da Ucrânia por um míssil russo —as 298 pessoas a bordo morreram.

Quem quer chegar à capital ucraniana normalmente pega trem e/ou ônibus de Varsóvia, na Polônia, e enfrenta cerca de 16 horas de viagem, parte dela em uma cabine-leito em um trem da era soviética.

Quase todos em Kiev baixam em seus celulares o Air Alert, o aplicativo com os alarmes antiaéreos. Quando há um alerta, o app toca uma sirene no último volume e orienta as pessoas a se dirigirem para o abrigo mais próximo, que normalmente é uma das estações de metrô.

A versão em inglês usa a voz grave de Mark Hamill, o ator que interpreta Luke Skywalker nos primeiros filmes da série Star Wars. "Atenção, alerta antiaéreo. Não seja descuidado. Seu excesso de confiança é sua fraqueza", instrui o Jedi.

O aplicativo também avisa quando o perigo passou. "Atenção, o alerta antiaéreo acabou –que a força esteja com vocês", diz a voz de Hamill, ecoando um dos slogans da franquia. Também no Air Alert, há links para vaquinhas virtuais para comprar drones para as Forças Armadas ucranianas.

Os hotéis também soam os alertas antiaéreos e orientam os hóspedes a irem para os abrigos. No Radisson Blu do centro da cidade, o abrigo fica no segundo subsolo. Há duas fileiras de camas feitas, à espera dos hóspedes, além de cadeiras, mesas e máquina de vender café, refrigerantes e salgadinhos.

Há também banheiros com chuveiros. O hotel montou até uma sala de conferência no bunker, completa, com dezenas de cadeiras. "É para o caso de um alarme interromper algum evento no hotel. Aí podem continuar a programação no abrigo", explica uma funcionária.

Muitos moradores de Kiev, porém, acostumados com os alarmes, ignoram os avisos. E muitos já contam com as sirenes no meio da noite. Alguns não se levantam. Outros se lembram de histórias de gente que morreu atingida por destroços e vão para o porão de suas casas.

A advogada Oksana Pokaltchuk muitas vezes vai dormir vestida. Ela sabe que, a qualquer momento, pode ter que correr para o abrigo. "Nós todos não dormimos há meses. É uma mistura de medo, ansiedade, e dos alarmes antiaéreos. Nosso maior sonho é, depois da vitória, conseguir dormir", diz.

"Nós parecemos normais, acordamos todos os dias, vamos trabalhar. Mas, na realidade, nossa vida não tem nada de normal", continua a advogada, para quem abrir o Facebook virou sinônimo de descobrir que algum conhecido morreu. "É como se fosse um cemitério."

Durante o dia, os alarmes são mais raros. Mas agora os mísseis chegam muito mais rápido. Normalmente, entre o soar do alarme e a interceptação dos mísseis ou drones, passam-se entre 10 e 15 minutos. Nesta segunda, foram pouco mais de cinco minutos. Segundo o porta-voz da Força Aérea ucraniana, Iurii Ignat, os mísseis foram lançados de bases terrestres e voaram por uma trajetória balística.

A guerra é assunto constante para todos. Quase todo ucraniano tem um familiar ou amigo na frente de batalha —ou no zero, como eles chamam— ou desaparecido, ou morto, ou forçado a sair de casa.

E todos estão envolvidos, de uma maneira ou de outra, no esforço de guerra. A ativista Natalia (que não quis dar seu sobrenome), por exemplo, foi à Europa e comprou três drones comerciais, que custam cerca de € 300 cada um, para doá-los às Forças Armadas, que os adaptam para usar em ataque ou vigilância.

"Na verdade, temos uma ilusão de que está tudo bem, porque se não fossem as defesas aéreas Kiev estaria toda destruída, dada a quantidade de mísseis que os russos estão lançando", diz Natalia Gumeniuk, jornalista fundadora do The Reckoning Project —iniciativa que treina repórteres e pesquisadores para coletar relatos de vítimas do conflito de modo que eles possam ser usados também em investigações de crimes de guerra.

A cidade está sob toque de recolher entre 0h e 5h. Ninguém pode estar na rua, apenas pessoas autorizadas. Não se pode fotografar, filmar e muito menos compartilhar nas redes sociais imagens de checkpoints, soldados em suas posições, fachadas de prédios governamentais sensíveis e o momento em que a defesa antiaérea intercepta um míssil.

Depois de mais de um ano de bombardeio constante, muitos moradores de Kiev sabem reconhecer um míssil ou drone pelo barulho. Os drones são chamados de "moped", porque fazem um barulho parecido com o de uma motocicleta de baixa cilindrada. Já os mísseis fazem um ruído bem mais alto.

"Todos que ficamos na Ucrânia decidimos que vamos ter que viver com essa guerra, que não sabemos quando vai terminar. Não dá para ficar adiando coisas para depois da guerra", diz a jornalista Angelina Kariakina, que foi diretora da rede de TV pública ucraniana e hoje se dedica a documentar depoimentos de vítimas da guerra. "Então vivemos do jeito que dá. Planejamos lugares para nos esconder quando há mísseis, para onde podemos fugir, providenciamos um gerador para o inverno, quando destruírem nossas usinas de eletricidade."

A jornalista viajou a convite do Public Interest Journalism Lab

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