Podcast discute como a Rússia pratica 'genocídio cultural' na Ucrânia

Para especialistas, ataques de Moscou visam a destruir também identidade de Kiev por meio de ofensivas contra arte ucraniana

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Em janeiro, quando a invasão russa na Ucrânia completava 11 meses, chegavam a 1.189 os objetos culturais ucranianos que as forças militares de Vladimir Putin já haviam furtado ou destruído. O número foi dado pelo governo de Kiev e reflete apenas parte da confusão cultural detonada pela guerra.

Criou-se, em paralelo, uma força-tarefa para salvaguardar bens que correm perigo ou protegê-los por meio do recolhimento a algum local mais seguro. Isso serve para museus, arquivos, teatros, bibliotecas, monumentos, prédios religiosos ou repartições públicas que abriguem obras de algum interesse artístico.

Visitante observa a obra São Sérgio e São Baco, um dos cinco raros ícones bizantinos expostos no Museu do Louvre, em Paris; as obras antes estavam expostas no Museu Nacional de Arte Bohdan e Varvara Khanenko, de Kiev, e foram retiradas para protegê-las de eventuais danos causados pela guerra
Visitante observa a obra São Sérgio e São Baco, um dos cinco raros ícones bizantinos expostos no Museu do Louvre, em Paris; as obras antes estavam expostas no Museu Nacional de Arte Bohdan e Varvara Khanenko, de Kiev, e foram retiradas para protegê-las de eventuais danos causados pela guerra - Anne-Christine Poujoulat - 13.jun.23/AFP

Esse mutirão reúne perto de 300 instituições nas 27 regiões da Ucrânia e se tornou responsável por um patrimônio ameaçado pela ação militar e pela pilhagem das forças de ocupação russas.

Quem discorre sobre essas e outras questões é o antropólogo Ihor Pochivailo, diretor do Museu Maidan, de Kiev, e um dos coordenadores do esforço coletivo patrimonial, criado após a guerra e conhecido pela sigla HERI. Pochivailo fez uma conferência na Universidade da Califórnia em Los Angeles, transformada em podcast pelo Centro de Estudos Europeus e Russos da instituição.

As informações mais chocantes que ele deu dizem respeito ao furto praticado por especialistas russos em história da arte que chegaram em companhia dos militares que invadiram o país vizinho. É o que aconteceu na cidade de Mariupol, no Museu de Arte e História, na Galeria Queens e no Museu Taupo. Foram levados quadros dos séculos 17 e 18, 200 moedas de prata e outros objetos antigos. Também sumiram peças de uma coleção de armas antigas e joias em ouro e prata, algumas delas do século 4º a.C.

De certa maneira, a Rússia não desconhece o acervo artístico da Ucrânia, porque ambas formavam uma mesma unidade política, a hoje extinta União Soviética. É por isso que em 2014 os russos capturaram a península da Crimeia e também lá fizeram a limpeza no acervo dos museus.

O problema é que a Ucrânia é um Estado independente, protegido por uma das Convenções de Haia de 1954, que zela por qualquer patrimônio histórico e artístico em caso de guerra. Apoderar-se dele é crime, e o grupo do qual Pochivailo faz parte cogita interpelar a Rússia no Tribunal Penal Internacional. A acusação seria de "genocídio cultural".

Pochivailo também defende que a Rússia, com a guerra que desencadeou em fevereiro de 2022, não procurou apenas inviabilizar a Ucrânia como país independente. Quis também usurpá-la de seu patrimônio cultural, para que ela se visse empobrecida num tópico fundamental para a preservação de sua identidade. "Os mísseis russos, seus bombardeios aéreos e seus blindados não visam apenas à minha família e à minha nação. Têm também como alvo uma cultura antiga de séculos", diz.

Cita a destruição proposital por mísseis russos do museu de Ivankiv, cidadezinha de 10 mil habitantes. O museu possuía importante coleção de telas da pintora modernista Maria Primatchenko, bastante conhecida na Ucrânia e, em seu tempo, admirada por Pablo Picasso. Foi uma destruição deliberada do patrimônio, não um acidente de guerra.

O mesmo cenário aconteceu na cidade de Kherson. Testemunhas dizem ter presenciado a chegada de seis veículos conduzidos por militares russos, que bloquearam com painéis a visão de uma das saídas do museu. Só assim seria possível filmar com o celular aquilo que estava sendo furtado. Sabe-se apenas –e os ucranianos o perceberam ao retomar a cidade– que os russos levaram bens arqueológicos do acervo.

Foi uma operação explícita de saque. Ao cometerem esse crime, os russos criaram aquilo que em bom português se chamaria "um país sem alma".

Por sua vez, um grupo local construiu um aplicativo voltado a voluntários que testemunharem ofensa a algum alvo cultural importante. Eles não têm poder de acionar militares ucranianos, mas conseguem encaixar suas prioridades nas mesas em que Kiev controla a movimentação dos combatentes.

O empenho de instituições americanas combina com declaração do presidente Joe Biden, para quem os russos se esforçavam para destruir a cultura da Ucrânia, não apenas sua infraestrutura material. É mais uma vez o genocídio cultural, do qual falou Ihor Pochivailo.

IDENTITY WAR IN UKRAINE: THE POWER OF CULTURAL RESISTANCE

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