Guerra na Ucrânia faz Alemanha triplicar orçamento militar e romper tradição

Traumatizado pelos conflitos que protagonizou, país cria fundo inédito depois do fim da Segunda Guerra para reequipar Forças Armadas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Moscou

A guerra na Ucrânia fez a Alemanha abandonar décadas de políticas de contenção militar e anunciar, neste domingo (27), que irá triplicar seu orçamento de defesa neste ano para reequipar suas Forças Armadas.

Segundo o primeiro-ministro Olaf Scholz, o país deverá gastar 100 bilhões de euros (R$ 582 bi) a mais em 2022, teoricamente tudo de uma vez, a partir de um fundo especial que realocará verbas do orçamento.

"Nós temos de investir mais na segurança de nosso país para proteger nossa liberdade e nossa democracia", afirmou no Bundestag (Parlamento), sob ovação. "Não pode haver outra resposta à agressão de [presidente russo Vladimir] Putin.

O premiê da Alemanha, Olaf Scholz, durante sessão extraordinária no Bundestag, em Berlim - Michele Tantussi - 27.fev.22/Reuters

O orçamento militar alemão neste ano era de 50,9 bilhões de euros (R$ 296 bi). No ano passado, segundo dados da Otan (aliança militar ocidental), o país havia gastado 53,2 bilhões de euros (R$ 309 bi) no setor. Em relação ao Produto Interno Bruto auferido em 2021, é um salto de 1,5% para 2,8%, o maior da história recente.

Não são apenas números. Há uma enorme implicação geopolítica na decisão de Scholz, que reverte as políticas majoritariamente pacifistas da Alemanha após o trauma nacional de ter protagonizado e perdido duas guerras mundiais (1914-18 e 1939-45) —e lidando com o estigma de ter sido o lar do nazismo, a mais aberrante ideologia "mainstream" do século 20.

O militarismo prussiano, referência ao reino da Prússia que liderou a unificação alemã no século 19, era temido como Putin em sua agressividade até 1945.

Segundo Scholz, o aumento no fundo se aplica só a este exercício fiscal. Mas os termos da solução, se houver, da crise com a Rússia podem mudar isso.

Vladimir Putin então terá conseguido o que nenhum presidente americano fez desde o pós-guerra —Donald Trump era especialmente crítico da falta de investimento alemão em defesa.

No sábado (26), o alemão já havia quebrado outra prática, a de não fornecer armamentos letais para países em conflito aberto, com o anúncio do envio de 1.000 mísseis antitanque Javelin e 500 sistemas antiaéreos portáteis Stinger, ambos modelos dos EUA.

Vários outros países europeus estão fazendo envios semelhantes para ajudar no esforço de guerra ucraniano. A vontade de Kiev de integrar a Otan e a União Europeia são motivos centrais para ação de Putin, que por meses concentrou tropas e lançou um ultimato ao Ocidente para cessar a expansão do seu clube militar.

A Otan, EUA à frente, não irá lutar pela Ucrânia, contudo. O motivo é simples: o risco de uma Terceira Guerra Mundial entre potências nucleares. Mas a tensão estabelecida na Europa é, como disse o secretário-geral da Otan, o norueguês Jens Stoltenberg, o novo normal.

A decisão alemã certamente causará dissenso na própria base de Scholz, que tem as alas esquerdistas do seu Partido Social-Democrata e no aliado Verde como pacifistas. Hoje, no ranking do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres, a Alemanha tem o sétimo maior orçamento militar do mundo.

Salvo medidas semelhantes de outros países do topo da lista, passará neste ano a ter o terceiro, atrás do indiscutível líder EUA (US$ 754 bilhões em 2021 - R$ 3,8 trilhões) e China (US$ 207 bilhões - R$ 1,06 trilhão).

A Rússia no ano passado foi o quinto, com US$ 62,2 bilhões (R$ 312 bi), atrás ainda de Reino Unido (US$ 71,6 bilhões - R$ 369 bi) e Índia (US$ 65,1 bilhões - R$ 336 bi). O próprio instituto estima que, considerando o critério de paridade de poder compra militar, ou seja, o quanto os russos gastam para ter o mesmo equipamento que o resto do mundo, o valor relativo sobe para US$ 178 bilhões (R$ 918 bi).

Hoje, os alemães são grandes exportadores de sistemas de armas importantes, como submarinos e tanques, e têm participação em projetos como o do caça europeu Eurofighter. Mas, internamente, sempre adotou políticas pacifistas, e participou de uma missão de combate no pós-guerra pela primeira vez na guerra do Kosovo, em 1999.

Teve uma participação expressiva na missão liderada pelos EUA no Afeganistão, onde viu 150 mil soldados irem e voltar ao longo de 20 anos —59 morreram por lá. Mas ainda assim, o tema é um tabu nacional.

A própria construção da União Europeia, um projeto visando acabar com as guerras no continente, primariamente unindo Berlim a Paris, passava pelo pressuposto de que a Alemanha seria o motor econômico do bloco —como é.

A França tem uma musculatura militar e indústria de defesa mais incisiva, só tendo como rival interno o Reino Unido, que de todo modo é parceiro na Otan mas deixou a UE. Ambos os países têm armas nucleares próprias, enquanto a Alemanha possui talvez 20 bombas B-61 sob guarda e operação americana na base de Büchel.

A outra consideração do movimento é o enterro da boa relação que Putin tinha com Berlim. Foi amigo de Gerhard Schröder, o chanceler que antecedeu a longeva Angela Merkel, que deixou a cadeira para Scholz no ano passado.

Merkel não era próxima de Putin, mas manteve uma política de acomodação e manutenção dos negócios energéticos com gás natural russo, como o agora suspenso gasoduto Nord Stream 2. Fazia, com a França, um contraponto de diálogo com Moscou, enquanto Washington e Londres mantinham uma linha mais agressiva.

A guerra enterrou isso. Mesmo a Turquia, o mais rebelde membro da Otan, que mantém fortes laços militares e econômicos com Putin apesar de também tê-lo como rival, vem pressionando o russo. O gabinete do presidente Recep Tayyip Erdogan pediu neste domingo que Moscou para com a "guerra na Ucrânia", usando a terminologia vetada pelo Kremlin.

Outro aliado, este mais próximo, também já havia criticado Putin: o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán.

Sobram com o Kremlin países laterais como a Venezuela e a gigante China, que tem se mantido abaixo do radar nesta crise. Aliada de Putin, ela evitou condenar a Rússia e fez um discurso genérico sobre garantias de integridade territorial da Ucrânia.

Neste domingo, seu embaixador em Moscou publicou um tuíte criticando os EUA por suas sanções e lembrando que 81% das principais guerras depois de 1945 foram iniciadas por Washington. Mas não passou disso, mantendo a discrição.

Com a ameaça ocidental de restringir o acesso de Moscou às suas reservas internacionais por meio de limitação de transferências, é bastante provável que Putin recorra a Xi Jinping, que conta com um sistema próprio de retiradas.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.