Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Motim de mercenários na Rússia teve características de armação, diz especialista

Para Zolotova, Putin pode ser beneficiado, apesar do risco de perda de apoio em caso de violência

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São Paulo

O motim de mercenários na Rússia, maior desafio enfrentado pelo governo de Vladimir Putin, tem características marcantes de uma armação —uma maskirovka ("disfarce", em russo), um teatro para dissimular intenções que é parte da doutrina militar do país desde o começo do século passado.

De Moscou, Ekaterina Zolotova, professora de economia mundial na Universidade Plekhanov e analista de assuntos russos da consultoria Geopolitical Futures, comandada pelo papa da geoestratégia americana, George Friedman, lista fatores estranhos na narrativa da crise: a ausência de reação do Ministério da Defesa, maior rival do Grupo Wagner, a facilidade com que as forças do ex-aliado de Putin Ievguêni Prigojin chegaram perto de Moscou e a mediação do ditador belarusso, Aleksandr Lukachenko.

O presidente Putin fala em rede nacional de TV na noite desta segunda (26), tarde no Brasil
O presidente Putin fala em rede nacional de TV na noite desta segunda (26), tarde no Brasil - Gavriil Grigorov/Sputnik/AFP

Logo depois da entrevista da analista, Putin foi à TV e confirmou a retirada do Wagner da Rússia, dando a opção para os soldados irem à Belarus. Ou seja, o ministro Serguei Choigu, seu rival, pode cantar vitória, mas na prática o grupo pode ficar intocado, protegido por um aliado de Putin, sem constranger o ex-chefe.

Falando em tese, Zolotova diz que "se essa maskirovka tem algum sentido potencial" para a Guerra da Ucrânia é o de favorecer o apoio interno a Putin. Isso vai contra a impressão geral de enfraquecimento do chefe do Kremlin, ainda que o desgaste imediato do episódio ainda esteja sendo avaliado.

Ela também descartou fissuras de relevo nas elites russas no episódio, ressaltando sua postura na crise. Ao fim, diz, o derramamento de sangue seria prejudicial ao presidente e ao líder mercenário, e isso também é um fator importante a ser considerado no desenlace da crise.

Como a sra. avalia a crise do motim e seus desdobramentos até aqui? Estamos acompanhando o conflito entre o Grupo Wagner e o Ministério da Defesa há meses. Os wagneritas [mercenários] foram retirados da frente desde a tomada de Bakhmut e estão na retaguarda. Assim, com a presença do Exército na linha de frente, era esperado que Prigojin ficasse insatisfeito e chegasse a um ponto crítico.

É bastante difícil avaliar se isso foi planejado com algum propósito ou se ele pretendia apontar problemas-chave para o governo. Entretanto, não vemos mudanças significativas nem na linha de frente, nem na retaguarda, nem na Defesa, em termos de equilíbrio de poder.

E as intenções de Prigojin? Ele disse que não queria desafiar Putin, e sim evitar o fechamento do Wagner e responsabilizar gente como Choigu. Ele exagerou? Ele falou sobre intenções desde o começo, no início da manhã do sábado (24). Ele disse que ou Choigu e Valeri Gerasimov [número 2 da Defesa e comandante da invasão da Ucrânia] deveriam encontrá-lo na sede do Comando Militar do Sul ou então bloquearia Rostov-do-Don e iria para Moscou. Prigojin não desafiou Putin. Nesta segunda, também disse que não planejava derrubar o governo. Queria evitar a destruição do Wagner. Isso devia o estar incomodando muito, considerando as circunstâncias em que Bakhmut foi tomada [Prigojin diz ter perdido 16 mil soldados lá].

No entanto, não acho que ele exagerou. Se foi uma armação, então poderia ter benefícios de médio ou longo prazo em mente. Se foi realmente uma marcha de insatisfeitos, espero que Putin tenha visto. Ele entende que é extremamente perigoso minar o poder no país agora.

Se Putin continuou no controle, é fato que uma força militar rebelde avançou em direção a Moscou com relativa facilidade. A senhora atribui isso ao fato de que talvez as negociações estivessem em andamento e mais derramamento de sangue seria indesejável? Ou talvez porque na verdade a capital estava bastante aberta ao ataque? Nesta segunda, Prigojin observou que esta marcha mostrou muitas coisas: os problemas de segurança mais sérios do país, já que o Wagner bloqueou todas as unidades militares e aeródromos no caminho. O avanço foi bastante rápido, visto que, devido às peculiaridades das vias de transporte —melhor, à falta delas—, o Wagner não tinha muitos caminhos a escolher.

Mas aqui é importante notar que a capital, ao contrário, reagiu muito rapidamente. As estradas principais que levam a Moscou foram rapidamente limitadas. Logo na entrada da cidade os guardas montaram metralhadoras e posições de tiros. Até mesmo as unidades da Guarda Nacional se posicionaram. Além disso, o principal equipamento militar permaneceu no local. No sábado à noite, eu dirigia pelo anel viário de Moscou e havia veículos militares engarrafando as vias para sul da cidade.

O derramamento de sangue realmente teria causado uma reação negativa entre a população civil, o que poderia minar significativamente as autoridades, e a situação poderia sair do controle em meio ao pânico e aos protestos civis, principalmente em Moscou, onde vivem mais de 13 milhões de pessoas. Tanto Putin quanto Prigojin entenderam isso.

Não gosto de especular sobre maskirovka [disfarce em russo, termo para ações teatrais com outros fins], mas a sra. acha que é uma possibilidade? Se sim, por quê? A imagem de Putin foi prejudicada. Esse foi meu primeiro pensamento, que só aumentou após Lukachenko surgir como mediador. Primeiro, é difícil supor que a inteligência do Ministério da Defesa seja tão ruim que não tenha previsto a situação. Segundo, não está muito claro como o comboio do Wagner conseguiu se mover tão rapidamente —como disse, as opções para chegar a Moscou são limitadas. Em terceiro, a reação rápida em Moscou, com equipamento militar na rua já noite do 23 e na madrugada do 24 de junho, antes da tomada de Rostov-do-Don.

Mas o que Putin ganharia? Se essa makirovska tem um sentido potencial para o futuro da operação militar, então Putin tem mais chances de obter apoio e votos [haverá eleição presidencial em 2024].

O que podemos esperar para o Wagner? Sabemos que alguns wagneritas já assinaram contratos com o Ministério da Defesa. Também sabemos que o grupo está se mudando para a Belarus —um acampamento militar começou a ser construído lá, e haverá vários desses campos. O primeiro será em Mogilev, a 200 km da fronteira com a Ucrânia, para 8.000 pessoas. O grupo continua funcionando em São Petersburgo como de costume, e seus centros foram reabertos em Tiumen e Novosibirsk.

Além disso, antes dos acontecimentos de sábado, Prigojin havia dito que suas forças voltariam à frente no dia 5 de agosto. Ao que tudo indica, a organização vai continuar a funcionar, talvez fique mais dispersa.

Do ponto de vista político, Putin estaria arriscando um momento Kornilov [em relação à vitória do governo provisório contra levante militar do comandante Lavr Kornilov, em 1917, que o enfraqueceu antes do golpe dos bolchevistas em outubro]? Sim, muitos de nós nos lembramos de Kornilov. Isso mostra como tais casos de conflito não são novos. Mas é importante lembrar que as condições em 1917 eram muito diferentes. A Rússia estava em profunda crise política e socioeconômica. Kornilov exigiu que o poder fosse transferido a ele e que houvesse lei marcial. Agora, a Rússia conseguiu conter a inflação, manter o crescimento e reorientar fluxos comerciais, além de Putin manter sua aprovação alta. Em segundo lugar, Prigojin não quis derrubá-lo.

O que o episódio diz sobre o apoio das elites a Putin? Círculos governantes tradicionalmente têm forças diferentes, que mantêm conflitos uns com os outros. Se falarmos de Prigojin, a disputa com a Defesa ocorria havia meses. Outro fator importante é que, enquanto o comboio do Wagner subia a rodovia M4, governadores se manifestaram em apoio a Putin. Isso mostra que a elite não busca desestabilizar o país.

Como fica o poder do ditador tchetcheno, Ramzan Kadirov? O destacamento dele assinou o contrato com a Defesa [recusado pelo Wagner], e as forças tchetchenas avançaram para Rostov. Isso foi uma demonstração de apoio a Putin, mas é bom lembrar que os kadirovitas [seguidores de Kadirov] tinham razões próprias. Há muitos rumores de que tchetchenos lutando pela Ucrânia [adversários de Kadirov] foram vistos na fronteira russa. Assim, a aparição de forças de Kadirov é bem compreensível.


Raio-X | Ekaterina Zolotova

Professora de economia mundial na Universidade Plekhanov e analista de assuntos russos da consultoria americana Geopolitical Futures, já pesquisou a integração russa à economia global e as características do desenvolvimento econômico da Venezuela.

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