Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Líder mercenário diz que não queria derrubar Putin, em 1ª fala após motim na Rússia

Presidente e ministro buscam vender normalidade, mas crise permanece sem respostas

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São Paulo

O líder do Grupo Wagner, Ievguêni Prigojin, disse nesta segunda (26) que o inédito motim promovido por suas forças não visava derrubar o governo de Vladimir Putin, mas "responsabilizar aqueles que cometeram erros" na Guerra da Ucrânia e evitar a extinção do exército de mercenários sob seu comando.

Foi a primeira fala de Prigojin sobre a crise iniciada por ele na sexta-feira (23), encerrada com um acordo mediado pela Belarus no dia seguinte, quando um comboio militar do Wagner se aproximava de Moscou e os mercenários dominavam a importante cidade de Rostov-do-Don, no sul da Rússia.

A ação mostrou, disse Prigojin, "graves problemas de segurança no país". Ele se desculpou por ter mandado atirar contra a Força Aérea russa —ao menos cinco helicópteros foram abatidos no sábado, segundo relatos. "Demos uma aula mestra sobre como o 24 de fevereiro de 2022 [o primeiro dia da invasão da Ucrânia] deveria ser", tripudiou.

Ainda persiste uma enorme ausência de respostas não só sobre o movimento rebelde em si, mas sobre o que ocorrerá daqui em diante. Ninguém sabe, por exemplo, o destino dos alegados 25 mil soldados comandados por Prigojin, o homem que era conhecido como "chef de Putin" e que se tornou a face visível da maior contestação ao poder do presidente em seus quase 24 anos de poder.

Membros do Grupo Wagner em Rostov-do-Don na sexta (23), primeiro dia do motim fracassado
Membros do Grupo Wagner em Rostov-do-Don na sexta (23), primeiro dia do motim fracassado - Roman Romokhov - 24.jun.23/AFP

O mercenário, que teria ido à Belarus mas gravou sua mensagem em local incerto, insistiu que "a marcha não visava derrubar a liderança russa", voltando suas baterias para o rival Serguei Choigu, o ministro da Defesa que buscava enquadrar todas as forças irregulares russas até 1º de julho. "O objetivo da marcha", afirmou, após condenar a condução da guerra, "era evitar a destruição do Wagner".

Prigojin vinha criticando Choigu e a cúpula militar de forma violenta havia meses, mas sempre poupando Putin. Mesmo quando foi chamado de traidor pelo ex-chefe, ele o criticou, mas insinuando que o presidente estava sendo enganado. Na sexta, disse que a invasão da Ucrânia foi um erro, pois não havia motivos para temer Kiev militarmente, e que as elites russas queriam se apossar das riquezas do vizinho.

O futuro do Wagner é incerto. Segundo a imprensa russa, as acusações criminais de revolta armada contra Prigojin, disparadas pelo temido FSB (Serviço Federal de Segurança, na sigla russa) no início da rebelião, estão, de acordo com relatos, em pé.

Ocorre que o fim do motim passou —segundo o que foi divulgado pelo ditador belarusso, Aleksandr Lukachenko, e por Prigojin— pela anistia a todos os participantes da insurreição. É um vaivém desconcertante: Putin jogou para a plateia no sábado com um discurso duro, acusando o ex-aliado de "facada nas costas" do povo e prometendo punições severas, mas já negociava um acordo —sugerindo assim que não atacou com mais vigor a coluna armada que se dirigia a Moscou para não acirrar ânimos.

Assim, sem explicação, a anistia veio, e foi anunciado que Prigojin seria exilado na Belarus. O mercenário, figura de proa na Guerra da Ucrânia e responsável pela única conquista de peso de Moscou neste ano, em Bakhmut, foi visto pela última vez saindo numa SUV de Rostov-do-Don, que controlou no motim.

Para a analista política Tatiana Stanovaia, do canal R.Politik, Prigojin ficou sem opções "porque não é um revolucionário" e só queria evitar a perda de controle sobre o Wagner, desenhada por Putin quando ele apoiou o plano de Choigu, maior rival do mercenário, para enquadrar suas forças.

Se continuar a ser processado, num caso que pode render a ele 20 anos de cadeia, Prigojin terá feito um péssimo acordo, mas talvez o único, já que não teria força militar para tentar derrubar Choigu, como sugeria em sua autointitulada "marcha da liberdade".

Para Putin, o desgaste foi enorme, com a imagem de Prigojin e de seus homens sendo aplaudidos após o fim da crise. Mas teria sido maior com uma batalha sangrenta perto de Moscou e em Rostov, para onde despachou as forças leais do ditador tchetcheno, Ramzan Kadirov, ex-aliado do mercenário.

Isso dito, não há sinal do que vai acontecer com as forças do Wagner, que operam em pelo menos dez países africanos e na Síria, além da Ucrânia. Serão absorvidas como tropa de elite no Exército? Serão desmanteladas e autorizadas a agir só no exterior, mas não mais na campanha no país vizinho?

Uma sugestão de resposta foi enunciada pelo chanceler Serguei Lavrov em entrevista à rede de TV estatal russa RT. Segundo ele, até para não afetar aliados, o Wagner seguirá trabalhando "como consultor" em países como Mali e República Centro-Africana. Em São Petersburgo, a sede do Wagner informou em nota estar "operando normalmente", seja lá o que for isso.

Enquanto isso, Putin divulgou um vídeo nesta segunda, durante um evento de industriais, parabenizando os presentes, como se nada tivesse ocorrido. No domingo, ele surgiu em uma entrevista provavelmente gravada antes do motim, falando generalidades sobre a guerra e nenhuma palavra sobre a crise.

Mais significativo, também nesta segunda Choigu foi mostrado em uma visita ao que o Ministério da Defesa disse serem postos do Grupo Ocidente de forças russas na Ucrânia. Novamente, uma mostra de normalidade, desafiada por alguns aliados do Kremlin, como o blogueiro militar Rybar, que disse em seu canal no Telegram que as imagens eram da semana passada.

Até o usualmente calado primeiro-ministro Mikhail Michustin deu o ar da graça em uma fala pública, esta ainda num diapasão um pouco mais realista. Disse que o motim foi "um desafio à estabilidade da Rússia". "Temos de agir juntos, como um time, mantendo unidas nossas forças, apoiando nosso presidente."

Em Moscou, que suspendeu as medidas de exceção previstas para situações de emergência com terrorismo, a calma prevalece, de acordo com relatos de moradores à Folha. Segundo comunicado do Comitê Antiterrorismo nesta segunda, "a situação do país é estável".

Atônitos com a velocidade e a opacidade dos acontecimentos, líderes ocidentais apenas repetem a avaliação possível, de que a crise mostrou fraquezas do governo Putin. Foi o que disseram nesta segunda o secretário-geral da Otan, a aliança militar ocidental, Jens Stoltenberg, e o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell.

Por evidente, exceto que Putin tenha arriscado sua imagem com uma elaborada "maskirovka" (palavra russa para uma ação teatral visando a encobrir objetivos), eles atiram no alvo certo. Mas há nuances, como diz a analista Allison Fedirka, da consultoria Geopolitical Futures (EUA): "Não houve grandes baixas, e o acordo negociado tirou força do Wagner, melhorou a imagem de Lukachenko e, no fim, mostrou que Putin continua no controle".

Guerra continua; Otan reforça flanco leste

Na frente de batalha na Ucrânia, a contraofensiva de Kiev segue em curso, assim como os ataques de Moscou com mísseis de cruzeiro contra cidades do país. Nesta segunda, o governo de Volodimir Zelenski afirmou ter tomado um novo vilarejo de Rivnopil, em Donetsk, no leste.

A contraofensiva, lançada no começo do mês, falhou até aqui em achar um ponto vulnerável nas defesas russas ao longo de 1.000 km de frente. Teve ganhos pontuais, 130 km quadrados segundo Kiev, mas ainda não conseguiu fazer um avanço decisivo para, por exemplo, romper as linhas de comunicação ligando a Rússia à Crimeia anexada pelo sul.

Em um desenvolvimento militar paralelo, a Alemanha anunciou que estacionará um contingente de 4.000 soldados na Lituânia, outro membro da Otan. Hoje, o Estado báltico, que faz fronteira a leste com a Belarus e a sudoeste com o território russo de Kaliningrado, tem cerca de mil militares da aliança em solo.

A nova base deverá ficar pronta em 2026, mostrando o longo prazo da militarização da Europa na esteira da invasão da Ucrânia. A Belarus, por sua vez, já recebeu as primeiras ogivas nucleares táticas, de emprego pontual, de Putin —elas são, contudo, operadas por russos.

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