Ucranianos relatam novo horror com inundação após destruição de represa

Muitos dos afetados viviam em Kherson, região que tentava retomar normalidade depois de nove meses sob ocupação russa

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Marc Santora Evelina Riabenko
Mikolaiv (Ucrânia) | The New York Times

A explosão que acordou Oksana Alfiorova, 57, parecia bastante normal, pelo menos para Kherson durante a Guerra da Ucrânia. Ela viveu nove meses de ocupação russa –"muito assustadora"– e, desde então, quase o mesmo tempo sob o bombardeio constante das forças de Moscou, que montaram acampamento no rio Dnieper depois que foram expulsas da cidade.

Mas, mesmo para Kherson, Oksana percebeu que as coisas estavam longe do normal na manhã de terça (6). A água estava enchendo as ruas de seu bairro. Uma barragem havia sido destruída, e logo acabou a energia, o gás parou de funcionar e o abastecimento de água parou.

Ucranianos que fugiram de Kherson após rompimento da barragem se cadastram para receber assistência humanitária em estação de trem de Mikolaiv
Ucranianos que fugiram de Kherson após rompimento da barragem se cadastram para receber assistência humanitária em estação de trem de Mikolaiv - Brendan Hoffman/The New York Times

Então ela fez algo a que havia resistido por muito tempo, apesar de todas as dificuldades do último ano e meio: fugiu. Embarcou num trem de retirada de Kherson para Mikolaiv, cerca de 65 km a oeste, desabrigada pela primeira vez em sua vida. "Não tive escolha."

Muitos de seus vizinhos e amigos decidiram arriscar e ficar. No trem destinado a levar pessoas para um local seguro havia 43 passageiros, entre os quais várias crianças. A maioria dos dez vagões estava vazia.

Oksana diz que muitas pessoas que ela conhecia decidiram se mudar para terrenos mais altos para ficar com amigos e familiares ou escapar da enchente em apartamentos em andares altos. "Tenho uma vizinha no terceiro andar que tem três cachorros. Ela não vai sair de casa."

Ela mesma mora no quarto andar do prédio de nove andares, e a inundação foi uma dificuldade a mais, embora seja a tristeza mais recente numa cidade que abrigava 290 mil pessoas antes da guerra.

Oksana, uma socióloga, relembra os meses sombrios da ocupação, quando tinha pouco dinheiro e comida. Soldados ameaçavam os civis, procurando pessoas pró-Ucrânia, saqueando casas e empresas e deixando de fornecer até mesmo os serviços mais básicos.

A ameaça não acabou depois que as forças ucranianas recapturaram Kherson em novembro e os russos começaram a bombardear a cidade a distância. Oksana se acostumou tanto que aprendeu a medir o perigo pelos sons no ar. "Se eu ouvir um assobio, pode estar muito longe. Mas quando é um som estrondoso, você entende que vai cair bem perto."

Em março, diz, um projétil explodiu tão próximo que ela pensou por um momento que seria o fim. Mas sobreviveu. Na terça-feira, quando as explosões chegaram mais uma vez por volta das 4h, ela imaginou que fosse apenas o despertador habitual de Kherson. Não era.

À medida que as ruas desapareciam sob a correnteza, carros de polícia começaram a patrulhar com alto-falantes para alertar sobre o perigo crescente. Liberem a área, diziam aos moradores.

"Verifiquei os canais do Telegram, conversei com vizinhos e amigos e decidi partir", relata Oksana. Ela e seu filho, Oleh, 23, correram para juntar documentos importantes, alguns pertences e seus dois gatos, Biusia e Miusia, que ela colocou em gaiolas de papelão.

Mas, quando eles tentaram sair do bairro, o bombardeio recomeçou, forçando-os a se abrigar num porão. Só quando acalmou é que puderam seguir para a estação de trens. "Ao sair, percebemos que esquecemos nosso dinheiro", diz. Mas havia voluntários de várias agências humanitárias na estação para ajudá-la.

Ela consultou amigos que ficaram para trás e diz acreditar que tomou a única decisão que pôde, por mais difícil que fosse. "O nível da água está tão alto agora que as pessoas podem nadar."

Cenas semelhantes foram descritas em Antonivka, a cerca de 65 km abaixo da barragem destruída. Uma moradora da cidade, Hanna Zarudnia, 69, diz ter passado a noite em um abrigo no porão devido aos bombardeios intensos. "Cerca de dez casas foram danificadas."

Então um novo horror tomou forma. "Antonivka estava cercada de água por todos os lados, estávamos numa ilha", relata. "Tenho fotos, vídeos: estradas, um estádio, uma escola, tudo alagado."

A Ucrânia e a Rússia se acusaram mutuamente pela explosão da barragem, uma estrutura crucial cuja violação colocou em risco milhares de pessoas. Zarudnia zomba da ideia de que a Ucrânia explodiu sua própria represa e lembra que alegações semelhantes foram feitas sobre ataques em Kherson, onde ela viveu sob ocupação.

"Fui testemunha disso." Ela diz não ter dúvidas de quem esteve bombardeando sua casa semana após semana naquela época, e tampouco sobre quem explodiu a represa agora, nesta semana.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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