Cidade recuperada pela Ucrânia vira alvo da Rússia e registra mortes em todos os lugares

Região de Kherson foi bombardeada mais de 2.000 vezes após expulsão de tropas russas no ano passado

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Jeffrey Gettleman
Kherson (Ucrânia) | The New York Times

A estrada para Kherson, na Ucrânia, é longa, reta e vazia. Campos abandonados se estendem de ambos os lados. Entrando na cidade pelo oeste, você passa pelo supermercado ATB, um dos pilares do comércio local. Um foguete o rasgou alguns dias atrás, com estilhaços atingindo compradores e matando quatro. Depois disso, há mais edifícios destruídos, demolidos por projéteis de artilharia russos.

"A morte está em toda parte", disse Halina Luhova, vice-prefeita de Kherson. Na verdade, a morte vem de muitas formas e em qualquer momento. Pessoas morreram esperando o ônibus ou o trem, caminhando para o trabalho, enquanto dormiam.

Tamara Smoliarchu diante do túmulo de sua sobrinha, Olena Kirpichenko, em cemitério de Kherson
Tamara Smoliarchu diante do túmulo de sua sobrinha, Olena Kirpichenko, em cemitério de Kherson - Finbarr O'Reilly - 9.mai.23/The New York Times

Nenhuma cidade ucraniana experimentou tamanha reviravolta do destino como Kherson, um porto no Rio Dnieper próximo do Mar Negro. O local foi capturado pelas forças russas no início de março de 2022, depois recapturado com júbilo pelas forças ucranianas em novembro. Mas em vez de aproveitar os frutos da libertação Kherson é hoje uma zona de matança.

Enquanto a Ucrânia se prepara para uma contraofensiva e acumula tropas e suprimentos ao longo do rio, os russos estão atacando com mais força do que nunca. "A semana passada foi terrível, uma semana sombria", disse Luhova na terça (9). Vinte e sete pessoas morreram e 40 ficaram feridas.

Ela estava vestida de preto e parada diante de uma casa funerária, uma cena muito familiar. "O inimigo é um animal", disse.

Na sua frente estavam dois caixões abertos, uma mãe e uma filha, esmagadas quando as paredes de sua casa explodiram. A mãe, na casa dos 80 anos, tinha sido enfermeira na época soviética. Sua filha, na casa dos 50, era professora. "Não conseguimos entender", disse Tamara Smoliarchuk, cuja irmã e mãe jaziam nos caixões. "Todos os dias eles nos matam."

Muitas pessoas aqui acreditam que o bombardeio implacável é a vingança da Rússia por perder a cidade. Em 2022, o presidente russo, Vladimir Putin, investiu pesadamente em Kherson, enviando administradores, caixotes de rublos e até famílias russas para transformar a cidade em uma mini-Rússia.

Mas em novembro, enfrentando um avanço constante das tropas ucranianas, os russos se retiraram repentinamente. Foi uma grande humilhação para Putin, que, de acordo com autoridades americanas, havia negado mais cedo os pedidos dos comandantes russos para recuar.

Funeral de Olena Kirpichenko e sua mãe, Varvara Shakhmatova, na cidade ucraniana de Kherson
Funeral de Olena Kirpichenko e sua mãe, Varvara Shakhmatova, na cidade ucraniana de Kherson - Finbarr O'Reilly - 9.mai.23/The New York Times

Assim que Kherson foi libertada, multidões de moradores invadiram a praça da cidade, buzinando, dando abraços e beijos, cantando canções patrióticas e chorando aliviadas. As imagens das comemorações foram transmitidas ao redor do mundo, e alguns ucranianos se permitiram acreditar que a região poderia ser um símbolo de algo maior, talvez até o começo do fim de seu horror.

Mas os russos não foram longe. Eles recuaram para o outro lado do rio e agora atravessam a água, às vezes a 1,5 km de distância, com tanques, artilharia, morteiros e foguetes. Os ucranianos dizem que os russos também estão usando aviões para bombardear aldeias ao redor de Kherson. Quando os ucranianos atiram de suas posições de dentro da cidade, atraem um fogo russo ainda mais pesado.

Mais pessoas comuns estão sendo mortas aqui do que em qualquer outro lugar, exceto talvez ao longo da linha de frente na região leste de Donbass, de acordo com relatórios diários dos militares ucranianos. Funcionários da região de Kherson disseram que, desde a libertação, pelo menos 236 civis perderam a vida. A própria cidade foi bombardeada mais de 2 mil vezes.

Na semana passada, uma equipe que remove minas terrestres formada por homens que passaram juntos por situações muito perigosas trabalhava num campo varrido pelo vento nos arredores da cidade. Um drone russo os avistou. Ele despejou uma granada, que incendiou uma pilha de minas. Autoridades locais disseram que seis homens foram mortos em um instante. O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, disse que os mortos foram nove ao todo.

Analistas militares dizem que os russos podem estar bombardeando Kherson para frustrar qualquer plano dos ucranianos de cruzar o Dnieper, agora uma linha de frente aquática. Nas últimas semanas, à medida que a contraofensiva se aproxima, os comandantes ucranianos reforçaram suas forças no sul, preparando novas brigadas e novos armamentos fornecidos pela Europa e pelos Estados Unidos.

A Ucrânia está sob imensa pressão para mostrar progresso no campo de batalha, temendo que, se não o fizer, começará a perder o apoio ocidental. Acima e abaixo das margens pantanosas do rio em Kherson, as forças ucranianas estão de olho nas posições russas do outro lado da água. Pequenas equipes de comandos ucranianos aumentaram o ritmo de seus ataques através do rio, disseram os moradores, e à noite fogos alaranjados queimam no horizonte.

Mas os planos dos militares permanecem secretos e misteriosos até mesmo para as pessoas que moram aqui.

Enquanto milhões de ucranianos voltaram para casa recentemente em cidades por todo o país, esse não é o caso de Kherson. As pessoas estão partindo. Empresas fecham. Longos ônibus urbanos passam com apenas três passageiros dentro. Os pontos de ônibus agora são fortificados com sacos de areia, mas as pessoas ainda estão sendo mortas apenas por tentar chegar em casa. Esta cidade costumava ter 300 mil pessoas. Agora, tem talvez 50 mil. Ou menos.

Luhova e outras autoridades locais organizaram retirada de moradores. Mas hoje em dia, mesmo com o bombardeio pesado, há poucos candidatos. Uma sensação de fatalismo obstinado percorre aqueles que escolheram ficar, incluindo a vice-prefeita, que diz: "As pessoas aqui precisam de mim".

Sacos de areia em ponto de ônibus danificado por bombardeio em Kherson
Sacos de areia em ponto de ônibus danificado por bombardeio em Kherson - Finbarr O'Reilly - 9.mai.23/The New York Times

As mulheres que varrem as ruas de Kherson agora usam coletes à prova de balas. Dizem que é volumoso e pesado, mas não querem tirar. "Tenho medo de não ter tempo suficiente, de morrer logo", disse Liudmila Chaika, apoiada em sua vassoura perto de uma pequena pilha de pétalas de flores que havia juntado.

"Não consigo me acostumar com esse bombardeio. Eu sinto o perigo", disse ela. "Mas para onde, para onde devo ir?"

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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