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Conheça a 'internet socialista' criada por Allende no Chile antes do golpe

Podcast 'Santiago Boys' lança luz sobre projeto revolucionário de engenharia interrompido por regime militar

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São Paulo

No ano em que o golpe militar no Chile completa meio século, o escritor e pesquisador belarusso Evgueni Morozov explora a efeméride sob um ângulo pouco conhecido. Famoso por suas críticas às big techs, o autor passou os últimos dois anos imerso na história dos engenheiros do Cybersyn, projeto iniciado no fim dos anos 1960 e conhecido como a "internet socialista de Salvador Allende" —presidente do Chile derrubado pelas Forças Armadas em 11 de setembro de 1973.

O Cybersyn é ao mesmo tempo parte da memória do golpe e da história dos estudos de cibernética, mas pouco se sabe sobre seus integrantes. Ao contrário dos Chicago Boys —jovens ligados à escola neoliberal americana que encabeçaram a política econômica do ditador Augusto Pinochet, que assumiu após o golpe—, os engenheiros e tecnocratas de Allende tiveram seu prestígio restrito ao mundo acadêmico. Uma reparação que Morozov pretende fazer com o podcast "Santiago Boys", lançado neste sábado (22) e disponível em plataformas de áudio.

O ex-presidente chileno Salvador Allende, no documentário "A Batalha do Chile" - AFP

Na obra, Morozov não apenas reconstitui a tentativa utópica e parcialmente bem-sucedida do grupo chileno de criar sistemas de comunicação sob preceitos não capitalistas, como também recupera disputas de governos com a ITT, corporação que apoiou o golpe contra Allende —ou "a big tech da época", nas suas palavras. É um trabalho de recuperação histórica que também oxigena debates geopolíticos atuais, da guerra global por semicondutores à pressão de governos sobre empresas de tecnologia.

Com nove episódios de cerca de uma hora, o podcast é narrado pelo autor em inglês (com sotaque belorusso) e há apenas uma nova versão prevista, em espanhol —mesmo que Morozov fale português e a história que ele conta perpasse o governo João Goulart (1961-1964). Além do ex-presidente, também aparecem na obra Leonel Brizola, que Morozov cita como um governador brasileiro que tentou nacionalizar a ITT.

Morozov mora na Calábria, no sul da Itália, e produziu o podcast de casa, durante a pandemia, com a ajuda de outros pesquisadores. Entrevistou mais de 200 pessoas em sua tentativa de dar protagonismo a um grupo que descreve como "muito mais radical, inovador e interessante" que aquele aliado de Pinochet.

"Existe uma mitologia, também no Brasil, em torno dos Chicago Boys, vistos como pioneiros do neoliberalismo, apresentados como grandes inovadores, envoltos na ideia de que tudo antes deles era datado, obsoleto, keynesiano, comunista", diz ele à Folha. "Mas se quisermos falar deles precisamos tratá-los como uma resposta a uma iniciativa muito mais inovadora, que nada tinha de obsoleta."

O Cybersyn, dos meninos de Santiago, era um sistema criado para mensurar os dados da economia chilena –um big data à moda antiga– à medida que o governo estatizava dezenas de empresas e precisava controlá-las. O país já vivia a iminência de um golpe, sem apoio do Parlamento, com greves e pressão social.

O projeto tem como principal referência gráfica o que Morozov chama de "sala mágica", uma sala de operação que mais lembra um cenário da série de ficção científica "Star Trek": um espaço ocupado por sete cadeiras brancas e laranjas com grandes painéis de controle em seus braços e cujas paredes tinham telas que exibiam dados enviados por máquinas de telex de diferentes partes do país. Era lá que ficavam os engenheiros e Allende.

Ilustração da sala de operação do Projeto Cybersync
Ilustração da sala de operação do Projeto Cybersync - Rama/Wikimedia Commons

As informações vinham das fábricas para um computador central. Um software analisava os dados e alertava sobre eventuais quebras de padrões. "Eles construíram modelos preditivos, como uma inteligência artificial, a partir de todas as fábricas que visitavam, e envolviam os trabalhadores nesses modelos. Era possível perceber se o que se passava em um determinado dia era um desvio da normalidade ou não", conta o pesquisador. "Algo tecnologicamente muito complexo para o Chile e para a época."

Morozov não é o primeiro a escrever sobre o assunto. O livro "Cybernetic Revolutionaries" (revolucionários cibernéticos), da professora do MIT Eden Medina, de 2014, traz na capa justamente uma fotografia da tal sala. Também há dissertações e artigos sobre o caso, inclusive um do próprio Morozov para a revista New Yorker.

No podcast, ele mergulha nos detalhes da rotina dos engenheiros e conta a história desse momento do Chile a partir de uma ótica tecnológica e geopolítica: a disputa contra a ITT, as tecnologias de vigilância e de propaganda usadas pelos inimigos de Allende, e as inovações que não vingaram.

Entre os protagonistas da narrativa estão o chileno Fernando Flores e o britânico Stafford Beer. O primeiro foi ministro das Finanças, depois secretário-geral de governo e chefe do projeto. Na época com 27 anos, hoje com 80, ele dá depoimentos já no primeiro episódio. Vai de preso político da América Latina a um empreendedor na Califórnia que influenciou alguns dos pioneiros do Vale do Silício.

Já o segundo, morto em 2002, era um consultor, executivo da área de negócios, e professor em Manchester, além de morar em uma mansão e dirigir um Rolls-Royce. Torna-se hippie, marxista, barbudo e figura da contracultura após a experiência chilena.

No futuro, Morozov pretende adaptar o projeto para uma série ou um filme e estendê-lo para outras histórias de "rebeldes da tecnologia que falharam". Mas deixa claro: "não esses personagens unidimensionais arrogantes do Vale do Silício. Não tenho interesse nesse tipo de fracasso".

Santiago Boys

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