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Boric: 'Temos que ser ainda mais exigentes com governos de esquerda'

Presidente do Chile defende autocrítica de líderes progressistas e volta a falar de Lula: 'Um líder forte com muita experiência'

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BBC News Brasil

É um dia particularmente ensolarado em Bruxelas. Vestido de terno preto e camisa branca, o presidente do Chile, Gabriel Boric, aparece na entrada principal da embaixada de seu país.

Boric sobe as escadas em ritmo acelerado, um tanto acalorado, seguido por seus colaboradores mais próximos que conversam com ele, lhe entregam documentos e até tentam pentear suas madeixas rebeldes. São cinco e meia da tarde de terça-feira (18).

O presidente do Chile, Gabriel Boric, durante entrevista à rede BBC, em Bruxelas
O presidente do Chile, Gabriel Boric, durante entrevista à rede BBC, em Bruxelas - BBC

Foi uma semana intensa para Boric: depois de visitar a Espanha —e se encontrar com o rei Felipe 6°, o premiê Pedro Sánchez e empresários—, ele viajou para Bruxelas, onde participou da cúpula de líderes da UE (União Europeia) e da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Em seguida, viajou para a Suíça e para a França, onde realizou importantes reuniões com autoridades locais.

Em meio à agenda lotada, o dirigente chileno concedeu entrevistas à BBC. A conversa com Boric aconteceu antes das desavenças entre ele e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que discordam sobre os rumos da Guerra da Ucrânia. O chileno pressionou a Celac a dar uma posição sobre o conflito, o que fez Lula chamá-lo de "jovem apressado".

Presidente, o senhor deixou o Chile em um momento muito difícil para o senhor e sua coalizão com o escândalo do Caso dos Acordos e as investigações de corrupção que afetam suas próprias fileiras. Você diria que este é o momento mais complexo da sua gestão?
É um momento complexo, sem dúvida. Mas a verdade é que não me sinto numa posição diferente daqueles que buscam o controle disso. Fico indignado com o fato de haver quem, independentemente do partido político ao qual esteja filiado ou do setor do qual se sinta parte, acredite que o Estado é um lugar de onde possa se tirar proveito, ainda mais no que diz respeito aos recursos de quem mais precisa.

A minha visão, e é o que transmiti a todo o governo como instrução, é que aqui tens de saber absolutamente tudo, ninguém está protegido, por mais próximo que esteja do partido. Se há pessoas que cometem crimes que são confirmados pela Justiça ou agem de forma contrária à ética e à moral que temos defendido, certamente terão de responder perante o povo. A diferença é que aqui não vamos fazer nenhum tipo de camaradagem ou perdão ou tentar amenizar a situação.

Sua figura foi destacada pelas críticas explícitas que fez aos regimes de Nicarágua, Venezuela, Cuba... Custou-lhe ser uma voz solitária nesses assuntos na América Latina?
Não me sinto uma voz solitária quando me encontro com o ex-vice-presidente da Nicarágua sandinista, Sergio Ramírez, quando converso com Gioconda Belli [escritora nicaraguense], com José Luis Rodríguez Zapatero (ex-premiê da Espanha) e com outros líderes da esquerda latino-americana. Acho que temos muito mais coincidências do que diferenças.

E nisso minha posição é relativamente simples: tem que ter o mesmo padrão de avaliação tanto contra governos do mesmo signo quanto contra governos de outro signo. Eu diria até que temos de ser mais exigentes com nós mesmos. E se há alguém que se incomoda com isso, bem, sinto muito, mas me parece que faz parte da coerência necessária construir um projeto de esquerda e uma alternativa de esquerda não só no Chile, mas no mundo.

Essa "outra" esquerda não vive um bom momento no mundo. Vê-se na Grécia, onde só conseguiu governar durante quatro anos, ou com Pedro Sánchez na Espanha, o que, se acreditarmos nas sondagens, é bastante complicado. Que esperança resta para a nova esquerda?
A política é de ciclos longos. Certa vez, perguntaram a um político chinês o que ele achava da Revolução Francesa e ele respondeu algo como "É muito cedo para dizer". Acho que avaliar as flutuações políticas com base nas mudanças eleitorais a cada quatro anos é um tanto míope. As mudanças são mais tectônicas, mais estruturais.

Dito isso, é verdade que a alternativa de esquerda, que também é referência para nosso setor político há muito tempo, como Syriza ou Podemos, não está no melhor momento em termos eleitorais.

O que me convenci —e este passeio também me ajudou a ver isso– é que a união entre esquerda e centro-esquerda é necessária para poder defender a democracia e enfrentar a ascensão de grupos de ultradireita que estão fazendo sentido para setores da população, que não necessariamente compartilham seus valores, mas estão preocupados ou assustados com as incertezas que o novo mundo que vivemos traz.

E aí temos que ser mais autocríticos, entregar melhores propostas, dar soluções mais rápidas e atender emergências. Tivemos que mudar a agenda e administrar nossas prioridades de maneira diferente porque a segurança é uma preocupação fundamental para os chilenos hoje.

Não podemos ignorar isso. Se não pudermos responder a isso, é claro que eles não acreditarão em nós.

A ideia de pensar que pode acabar passando a faixa presidencial para a extrema direita de José Antonio Kast te tira o sono?
Preocupa-me a continuidade das instituições democráticas e o bem-estar do povo chileno. E, nesse sentido, acredito que as propostas da ultradireita em nosso país não são boas para os chilenos e, portanto, espero que possamos ter continuidade.

Mas ainda é cedo para pensar nos resultados das eleições presidenciais. Faltam dois anos e meio, e estou confiante que o fruto do trabalho que desenvolvemos vai convencer as pessoas que esta tem sido uma boa alternativa. E se não, respeitarei a vontade democrática, que é o que corresponde numa democracia.

O líder do Partido Republicano do Chile, o conservador José António Kast, discursa após resultado das eleições para o conselho constitucional, em Santiago
O líder do Partido Republicano do Chile, o conservador José António Kast, discursa após resultado das eleições para o conselho constitucional, em Santiago - 7.mai.23/Reuters

Continuando no campo dos sonhos... Com o que sonha quando seu governo acabar?
Em termos pessoais... Adoraria ir a Magalhães [sul do Chile], passar mais tempo no estreito, viver um dia num farol. Mas em termos mais coletivos, o que me comove é que quando acabar o governo possamos ter melhorado um pouco a confiança interpessoal em nosso país, para que as pessoas não fiquem desconfiando das outras o tempo todo.

Que possamos nos ver e nos reconhecer como iguais e que colaborando somos melhores que competindo. E por sua vez, que as instituições, não só do Estado, mas também da sociedade civil, sejam mais valorizadas pelos cidadãos. Isso, para além de políticas públicas pontuais, seria uma importante conquista de um governo que se considera progressista.

Gostaria de concorrer de novo, quando possível?
Não é algo que está na minha cabeça. Eu não tinha planejado esta situação. Há pessoas que às vezes acreditam que nasceram com a estrela para fazer tal coisa. Não me sinto parte desse grupo. E obviamente vou acabar muito jovem, se tudo correr bem, aos 39 anos, mas não penso no que vou fazer a seguir.

Colaborar com o meu partido, com o Chile, mas não no sentido de querer voltar a ser presidente, não é algo que eu esteja pensando.

Talvez o maior desafio diplomático internacional no momento seja a Guerra da Ucrânia. A maioria dos líderes latino-americanos, liderados, por exemplo, pelo presidente Lula no Brasil, pediu um cessar-fogo imediato. Mas parece que o sr. está tomando uma posição diferente...
Em primeiro lugar, reconheço a liderança de Lula. Ele é um líder forte com muita experiência, ele tem um grande histórico. Tenho admiração por ele.

Mas não concorda com ele...
Concordo com ele que temos de falar de paz e não ficar só falando de guerra. Minha posição, ou a posição do Chile, é que não importa o que você pensa da Ucrânia ou o que você pensa de Volodimir Zelenski. Não importa quais são suas opiniões sobre o Putin ou sobre a Rússia.

A guerra não é culpa de ambas as partes. A Rússia invadiu um país livre e quer tomar parte de seu território. E isso viola o direito internacional. E devemos defender o direito internacional porque agora é a Ucrânia, mas amanhã pode ser nós, pode ser qualquer um.

Há preocupação na União Europeia de que a China, e talvez também a Rússia, estejam fazendo investimentos significativos e amigos na América Latina, enquanto o Ocidente está perdendo terreno. Acha que isso é verdade? Isso te preocupa?
Acredito que todos os países devem concordar em defender os direitos humanos, porque esse é um avanço civilizatório que não devemos negar.

Acha que a China ou a Rússia estão em uma posição mais forte para defender os direitos humanos?
Creio que não. E acho que nem os Estados Unidos nem alguns países latino-americanos, meu próprio país em algum momento. Há muitos países que violaram os direitos humanos. Mas devemos defender a qualquer momento e em qualquer governo a importância da universalidade dos direitos humanos.

Acredito firmemente que a democracia é a melhor maneira de resolver nossos problemas. Mas não acho que devemos, como o Ocidente, impor a democracia a países que têm outras culturas. Isso é algo que cada país e cada povo deve discutir e resolver por si.

Preocupado com a extensão da influência da China?
Quando você fala com os chineses, eles não falam sobre a diferença entre sua cultura e a americana. Eles falam sobre o que podem fazer para ter mais investimento, como podem ajudar nisso ou naquilo.

E é claro que você não precisa ser ingênuo sobre isso, mas a China está tendo uma posição mais forte. E acho que é porque eles estão fazendo seu trabalho melhor. Os EUA têm uma dívida pesada com a América Latina há muitos anos.

Está se referindo à dívida histórica negativa?
Sim. E não acho que seja culpa de Biden. Os Estados Unidos devem reconhecer que erraram em sua relação com a América Latina ao promover golpes militares. E acho que é por isso que esta cúpula é tão importante, porque acredito firmemente que na América Latina não devemos depender dos EUA ou da China. Devemos ser independentes.

E como ser independente em um mundo cada vez mais polarizado?
Bem, com países que pensam da mesma forma e compartilham valores. E compartilhamos valores com a Europa.


Você pode ouvir a entrevista completa do presidente Boric com o programa HardTalk da BBC neste link.

Este texto foi originalmente publicado aqui.

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