Como estão migrantes largados por Ron DeSantis em balneário dos EUA quase 1 ano depois

Governador da Flórida elevou tática de protesto contra imigração irregular a paroxismo ao enviar cerca de 50 venezuelanos para Martha's Vineyard de avião

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Edgar Sandoval
Edgartown (Massachusetts) | The New York Times

Não muito longe da praia, em uma extensa propriedade localizada em Martha's Vineyard —refúgio de políticos e celebridades no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos—, Deici Cauro ajustou um boné de beisebol para evitar o sol escaldante. Ela estava agachada, arrancando ervas daninhas com as mãos, quando uma voz familiar gritou do outro lado do quintal.

"Vasos!", sua patroa chamou, e fez sinal para Cauro segui-la até outro jardim próximo. "Vamos?", Cauro respondeu em espanhol, perguntando-se se eles tinham decidido se mudar. "Sim, 'vamos', eu acho, o que quer que isso signifique", respondeu a chefe, o que fez as duas rirem.

A imigrante venezuelana Deici Cauro durante um trabalho de paisagismo em Martha's Vineyard
A imigrante venezuelana Deici Cauro durante um trabalho de paisagismo em Martha's Vineyard - Matt Cosby - 13.jun.2023/The New York Times

Quando Cauro fugiu da Venezuela no verão passado, não imaginou que um dia estaria trabalhando e morando numa ilha rica ao sul de Cape Cod, cercada por barcos e mansões do tipo que ela só tinha visto no cinema.

Já se passaram nove meses desde que o governo da Flórida, sob ordens de Ron DeSantis, fretou dois voos do Texas que levaram Cauro e outros 48 migrantes recém-chegados a Martha's Vineyard, um enclave liberal que até então tinha pouca experiência direta com o surto de imigrantes na fronteira EUA-México.

A medida política —repetida este mês, quando autoridades da Flórida organizaram mais dois voos de migrantes do Texas, desta vez com destino à Califórnia— foi uma tentativa de forçar os líderes democratas a muitos quilômetros de distância a lidar com um aumento da migração que afetou os estados ao longo da fronteira.

As viagens deixaram muitos venezuelanos confusos e alarmados. Alguns foram informados de que estavam indo para Boston ou Seattle, onde haveria muitos empregos, assistência e moradia.

Mas nenhum desses era o destino real; era Martha's Vineyard, e no fim da movimentada temporada de verão, quando os turistas começam a voltar para casa, para os escritórios e escolas. Não havia empregos nem lugares para eles ficarem. Voluntários instalaram os recém-chegados numa igreja e providenciaram transporte.

Em poucos dias, a maioria dos migrantes tinha ido para outras partes de Massachusetts e lugares como Nova York, Washington e Michigan —cidades mais bem equipadas do que uma pequena ilha para acomodar pessoas que chegaram com pouco ou nada.

Nem todos, porém, foram embora.

A partir da esquerda, os migrantes venezuelanos Eliud Aguilar, Daniel Cauro e Deici Cauro almoçam com Rachel Self, à direita, uma advogada de imigração - Matt Cosby - 11.jun.23/The New York Times

Cauro, 25, é uma de pelo menos quatro migrantes que permaneceram discretamente na ilha, formando laços com uma comunidade que abriu todas as portas que pôde. Ela trabalha como paisagista. Seu irmão, Daniel, 29, e seu primo, Eliud Aguilar, 28, encontraram empregos em pintura e telhados.

Eles a princípio viveram em casas de residentes de Martha's Vineyard, convidados pelos proprietários. Então começaram a ganhar dinheiro suficiente para alugar uma casa de dois quartos, com os quatro ganhando US$ 1.000 (R$ 4.800 mil) por mês cada um. Eles circulam pela cidade de bicicleta.

"Eu nem sabia onde ficava Martha's Vineyard. E agora me sinto acolhida por todos aqui. Estou trabalhando, fazendo amigos e esta é minha casa agora", disse Cauro com um largo sorriso. "Este é o meu lar agora. Não quero ir embora."

Os voos organizados pela Flórida ocorreram enquanto os governadores republicanos do Texas e do Arizona transportavam de ônibus milhares de migrantes para longe da fronteira, sobrecarregando os sistemas de auxílio de cidades como Nova York, Washington e Chicago.

Muitos dos 49 migrantes que foram levados para Martha's Vineyard ainda enfrentam dificuldades. Alguns ainda não obtiveram permissão de trabalho, enquanto vários ainda vivem em abrigos, sem condições de pagar uma moradia permanente.

Os quatro que conseguiram permanecer na ilha também enfrentaram desafios. Cauro diz que ainda acha difícil confiar em estranhos depois da sensação profundamente perturbadora de ter sido deixada à deriva por pessoas que agora ela acha que fizeram dela e de seus parentes peões políticos.

Ela afirma que é importante pagar suas próprias despesas e não se tornar um fardo para a comunidade que a acolheu. Sua chefe, uma mulher de 60 anos que não quis ser identificada por empregar alguém sem que ela tenha visto de trabalho, diz sentir que Cauro é membro da família.

Cauro entendeu o suficiente para acenar com a cabeça. "Viemos aqui para trabalhar em qualquer coisa, por mais difícil que seja. Estamos felizes por estar morando aqui."

Nem todos receberam os recém-chegados de braços abertos. Uma antiga moradora, Angela Cywinski, alega que a situação coloca a comunidade em uma posição difícil, tentando acomodar pessoas que não podem ser legalmente contratadas em restaurantes ou hotéis. A maioria dos trabalhadores imigrantes na ilha, diz ela, investiu o tempo e o dinheiro necessários para obter uma situação legal.

Cywinski disse que conhece imigrantes do Brasil que gastaram até US$ 60 mil (R$ 288 mil) e esperaram anos para obter vistos para viver legalmente na ilha. "Não é justo quando as pessoas furam a fila", disse ela.

Deici Cauro e outros tiveram que encontrar trabalho por debaixo dos panos até que suas permissões de trabalho sejam aprovadas, o que geralmente leva vários meses como parte do processo de asilo.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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