Conflito na Ucrânia revive batalhas e memórias da 2ª Guerra 80 anos depois

Combates atuais coincidem com locais de disputas do passado, e comandantes russos e ucranianos usam estratégias antigas

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Andrew E. Kramer
Zaporíjia | The New York Times

Ao escalar pedras, passar por pneus velhos e sucata, Oleksandr Chkalikov aventurou-se no leito seco de uma vasta represa. No local, repousava uma lembrança de batalhas passadas nesta mesma faixa do sul da Ucrânia: uma suástica gravada em uma rocha tinha emergido. O ano "1942" estava inscrito ao lado.

"A história está se repetindo", disse Chkalikov, motorista de tanque de licença do Exército ucraniano, sobre a gravação da época da Segunda Guerra. Ele observou o momento: a suástica tornou-se visível após um ato de guerra recente, a explosão da barragem de Nova Kakhovka, em junho, que drenou um reservatório.

"Estamos travando esta guerra na mesma paisagem e com as mesmas armas" utilizadas na Segunda Guerra, disse, evocando a artilharia pesada e os tanques que ainda hoje traçam o rumo de uma guerra.

 Soldado ucraniano em um tanque russo abandonado no rio Donets
Soldado ucraniano em um tanque russo abandonado no rio Donets - Ivor Prickett - 24.mai.23/The New York Times

A Segunda Guerra tem sido um campo de batalha ideológico no conflito de hoje na Ucrânia, com a Rússia chamando falsamente o governo ucraniano de neofascista —e citando isso como justificativa para sua invasão. A história militar do país também surge no campo de batalha real, não apenas com artefatos no solo, mas nas lições que a Ucrânia aprendeu há muito tempo.

O terreno e os rios muitas vezes canalizaram os exércitos atuais para os locais de alguns dos combates mais violentos da Segunda Guerra, quando tropas alemãs e soviéticas varreram vales e planícies.

De fato, as principais batalhas de hoje coincidiram tanto com os locais de combates daquela época que os soldados se encontraram abrigados em bunkers de concreto de 80 anos, perto de Kiev. Eles descobriram ossos de soldados alemães e cartuchos de balas nazistas ao limparem as trincheiras. A Segunda Guerra começou em 1939 onde hoje é a Ucrânia, com uma invasão soviética no território então controlado pela Polônia no oeste ucraniano, numa época em que a União Soviética e a Alemanha nazista eram aliadas.

Quando esse pacto foi rompido, em 1941, a Alemanha atacou e lutou de oeste a leste em toda a Ucrânia. A maré da guerra mudou em 1943 com a derrota alemã na Batalha de Stalingrado, e o Exército Vermelho lutou contra os nazistas na Ucrânia movendo-se para oeste.

Uma das vitórias iniciais da Alemanha foi na Batalha do Mar de Azov, em 1941, quando suas tropas avançaram de Zaporíjia para Melitopol. Ao longo de três semanas, os nazistas cobriram esse terreno para posicionar um ataque à Crimeia e cercar soldados do Exército Vermelho na região de Kherson.

A Ucrânia repete a ofensiva da Segunda Guerra e luta em locais a sudeste de Zaporíjia, no que os militares ucranianos chamam de "direção de Melitopol". O objetivo estratégico é o mesmo de oito décadas atrás —isolar os soldados inimigos na região de Kherson e ameaçar a Crimeia—, mas as tropas ucranianas se movem muito mais devagar, tendo avançado apenas alguns quilômetros em um mês.

"Paralelos históricos, infelizmente ou felizmente, continuam vindo à tona", disse Vasili Pavlov, conselheiro do quartel-general da Ucrânia que estudou de perto as semelhanças das duas guerras.

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Katerina Rotarenko, à direita, e dois engenheiros de desminagem procuram restos humanos na região de Kherson, na Ucrânia - David Guttenfelder - 1º.jul.23/The New York Times

Estrategicamente, disse ele, os generais da Ucrânia se basearam mais diretamente na história da Segunda Guerra ao planejar uma defesa de Kiev no ano passado.

Nos primeiros dias da guerra, o Exército russo avançou da Belarus em direção à planície de aluvião do rio Irpin —apenas para descobrir que os ucranianos tinham explodido uma barragem e inundado uma vasta área de campos, o que bloqueou o avanço. Foi uma represália a um truque soviético de 1941, quando Moscou explodiu uma barragem para interromper um ataque de tanques alemães, disse Pavlov.

"Os generais sempre se preparam para lutar a última guerra. Mas os comandantes russos nem se prepararam para lutar a última guerra." As tropas alemãs finalmente capturaram Kiev em 1941; os russos lutaram por um mês nos subúrbios na primavera de 2022 e se retiraram.

Quando o conflito atual mudou de Kiev para o leste, ele também refez as batalhas da Segunda Guerra. Então, como hoje, o curso sinuoso do rio Donets tornou-se uma linha de frente —com seus barrancos altos e margens pantanosas como barreiras enquanto tropas rivais lutavam pelas cidades e vilas ao lado delas.

Na Segunda Guerra, o rio formou uma parte da chamada Linha Mius, posição defensiva que os nazistas construíram para retardar os contra-ataques soviéticos após a Batalha de Stalingrado.

Na guerra atual, várias cidades e vilarejos ao longo do Donets entraram em jogo. Forças ucranianas usaram os altos penhascos e as planícies aluviais do rio para tentar defender a cidade de Lisitchansk, sem sucesso, e impedir uma travessia russa perto da cidade de Bilohorivka. Ambas as guerras deixaram cidades e vilas ribeirinhas em ruínas. Os combates atuais também danificaram com estilhaços monumentos erguidos para comemorar os combates da Segunda Guerra Mundial.

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Cidade de Demidiv, perto de Kiev; nos primeiros dias da guerra, ucranianos romperam uma barragem e inundaram uma vasta área de campos para bloquear o avanço russo - David Guttenfelder - 25.abr.23/The New York Times

A vila de Stari Saltiv, na região de Kharkiv, foi tocada por ambas as guerras. Da mesma forma, foi destruída novamente. Lidia Petchenizka, 92, que viveu no vilarejo toda a sua vida, lembrou que em ambos os casos a luta foi definida pelos projéteis de artilharia voando sobre o rio contra os soldados inimigos escondidos na aldeia. Para os civis, as experiências foram semelhantes: esconder-se em porões. "Foi horrível."

Como nem a Rússia nem a Ucrânia conseguem obter superioridade aérea, os combates atuais giram em torno principalmente da artilharia e dos tanques, como ocorreu na Segunda Guerra. Além da adição de drones e mísseis antitanque sofisticados, os Exércitos lutam com armamento semelhante.

A contraofensiva ucraniana ao sul de Zaporíjia faz "uma analogia direta" com a ofensiva alemã em 1941, segundo Pavlov. Os objetivos eram semelhantes: atravessar as planícies, cortar linhas de abastecimento das tropas russas na margem leste do Dnieper e se posicionar para ameaçar o istmo da Crimeia.

Zaporíjia, uma extensa cidade industrial às margens do extinto reservatório de Kakhovka, foi ocupada por forças nazistas na Segunda Guerra. Hoje, fica na linha de frente, onde sirenes aéreas soam várias vezes ao dia e mísseis russos ocasionalmente explodem. Mas quando a água recuou do aterro à beira do lago da cidade, após o rompimento da barragem, foram as munições não detonadas do passado que viraram o perigo mais grave. Os serviços de emergência da Ucrânia disseram que os bancos de areia e as novas ilhas emergindo do reservatório "ficaram cheios de objetos explosivos da Segunda Guerra Mundial".

Oleksandr Chkalikov, um motorista de tanque ucraniano, percorre a paisagem revelada após a destruição da barragem de Kakhovka, na região de Zaporíjia
Oleksandr Chkalikov, um motorista de tanque ucraniano, percorre a paisagem revelada após a destruição da barragem de Kakhovka, na região de Zaporíjia - David Guttenfelder - 8.jul.23/The New York Times

Equipes de desminagem encontraram e removeram bombas de aviação da Segunda Guerra, disse o serviço. Chkalikov, o motorista de tanque, cuja casa fica a curta caminhada da costa, lutou nos primeiros dias da contraofensiva ucraniana em campos a sudeste da cidade.

Depois que seu tanque atingiu uma mina, ele foi dispensado de sua unidade, voltou para casa e começou a explorar o leito seco do lago. Encontrar a suástica emergindo da água, disse ele, "não me surpreendeu nem um pouco". As guerras estão separadas por décadas, mas "a paisagem não mudou".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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