Descrição de chapéu Financial Times

Êxodo de famílias ameaça mobilidade social e diversidade em Londres

Altos custos dos imóveis e aluguéis levam moradores de baixa e média renda a se mudarem para fora da cidade

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Emma Jacobs
Financial Times

Jo Riley está andando em ritmo acelerado, próprio de uma diretora escolar ocupada. Uma vez em sua sala de trabalho, com suas pilhas de papéis e as paredes decoradas com cartões postais de capas de livros, fotos de alunos e familiares, a expressão da diretora fica mais suave. E ela reconhece o estresse e a tristeza de comandar a escola primária de Hackney, em Londres, prevista para ser fechada no próximo verão.

"Falei outro dia que é como perder uma pessoa querida, mas na realidade é mais como ter uma doença terminal. Cada vez que uma criança deixa a escola, é mais um sintoma que aparece. Não há cura, a única coisa que se pode fazer é esperar. Somos uma comunidade. Um de nossos valores fundamentais é o amor."

Pais deixam crianças em escola de Londres
Pais deixam crianças em escola de Londres - Ben Stansall - 8.mar.21/AFP

A Randal Cremer é uma de várias escolas de Londres previstas para ser fechadas ou fundidas em decorrência do baixo índice de natalidade, de famílias estarem deixando a cidade por conta do preço alto de creches, do brexit e de pais terem reavaliado suas vidas na pandemia.

O maior fator de todos, diz Riley, é que "a habitação está ficando fora do alcance das pessoas". Philip Glanville, prefeito de Hackney, diz que há uma crise aguda de falta de acesso financeiro a imóveis residenciais. Para conservar crianças na região, afirma, é necessária uma intervenção do governo para garantir "investimentos reais em habitação social, fazer os subsídios sociais corresponderem ao custo real da habitação e conter a alta descontrolada dos aluguéis".

Hackney não é a única área da capital a perder crianças. A London Councils, que reúne as administrações dos distritos de Londres, prevê uma queda de 7,6% no número de alunos ingressando no ensino primário na cidade entre os anos letivos de 2022-23 e 2026-27 –o equivalente a mais ou menos 243 classes.

Um futuro com números minguantes de crianças é algo que muitas cidades estão encarando, incluindo San Francisco, Seattle e Washington. Em Hong Kong, para cada adulto com mais de 65 anos há 0,7 criança, e em Tóquio, ainda menos: 0,5.

Mesmo antes da pandemia, Joel Kotkin, autor de "The Human City", escreveu uma década atrás sobre a perspectiva de uma cidade sem crianças, dizendo que as cidades americanas "embarcaram num experimento para livrar nossas cidades de crianças".

"A tão celebrada e autoelogiada ‘classe criativa’ –um grupo demográfico que inclui não apenas profissionais liberais solteiros, mas também casais de alto poder aquisitivo e sem filhos, casais cujos filhos já saíram de casa e estudantes universitários— ocupa boa parte do espaço urbano que no passado era preenchido por famílias. Nossas grandes cidades estão se convertendo cada vez mais em playgrounds para ricos."

Jon Tabbush, pesquisador sênior do think tank Centre for London, preocupa-se com o risco de a capital britânica se tornar "uma cidade mais segregada, menos culturalmente vibrante e, no longo prazo, menos produtiva". Os altos custos dos imóveis e aluguéis estão levando moradores de baixa e média renda a se mudarem para fora da cidade, e isso provavelmente "vai aumentar a segregação racial e prejudicar a cultura diversificada de Londres, que produziu música, arte e cinema dos mais populares".

A ausência de crianças, escreveu o urbanista Richard Florida em 2019, "reflete como determinados bairros acabam se especializando em determinados tipos de residentes, conforme sua renda e etapa na vida".

Em Londres as crianças se espalham de modo desigual, e as famílias com crianças tendem a se mudar para a periferia. Dados do Centre for London mostram que entre 2001 e 2021 houve um declínio no número de famílias com pelo menos uma criança dependente nos distritos centrais de Hackney (9%), Islington (7%), Lambeth (10%) e Southwark (11%). Mais a leste, em Barking e Dagenham, as famílias com filhos aumentaram em 34%, graças aos preços baixos dos terrenos e a um programa enorme de construção de unidades residenciais.

Essa segregação, em que as famílias mais pobres são expulsas para a periferia mais distante de Londres ou, em muitos casos, para fora da capital completamente, diz Tabbush, "resulta numa cidade com menos mobilidade social e hierarquias de renda e classe mais calcificadas".

Paul Swinney, diretor de políticas públicas e pesquisas do Centre for Cities, diz que oferecer o que todas as faixas etárias procuram é um desafio enorme para qualquer distrito. "É difícil oferecer atrativos e instalações mundialmente famosos e também escolas públicas."

A presença de crianças em um bairro influi sobre a oferta pública e privada de instalações locais. Enrico Moretti, professor na Universidade da Califórnia em Berkeley especializado em economia urbana, destaca que "a demanda por melhoria na qualidade das escolas tem uma correlação positiva com o número de famílias com crianças que vivem na área, enquanto a demanda de entretenimento –restaurantes, bares e museus— tem uma correlação negativa com o número de famílias locais com filhos pequenos".

Apesar disso, a presença de crianças na cidade pode beneficiar a todos os adultos, não apenas aos pais. O urbanista Gil Penalosa descreve crianças como uma "espécie indicadora", dizendo que projetar cidades funcionais a elas significa que os territórios funcionarão para todas as outras pessoas também.

Alexandra Lange, autora de "The Design of Childhood", estende-se sobre essa questão, argumentando que, se você projetar cidades para que ofereçam segurança para adultos, elas "geralmente serão projetadas para homens jovens e em boas condições físicas, capazes de atravessar as ruas rapidamente e que não sentem a necessidade de descansar depois de dez quarteirões."

"Mas isso não representa a maioria das pessoas. Mudar a lente para a de uma criança de três anos, de dez anos, um adolescente de 16 –sem falar em uma pessoa de 80— amplia radicalmente o significado de projetar uma cidade boa e permite que uma população mais diversificada viva, trabalhe e se divirta nela."

Jerome Frost, diretor para o Reino Unido, Oriente Médio e África da empresa de engenharia Arup, concorda. Para ele, a presença de crianças incentiva o design de um ambiente urbano que é "seguro e que favorece pedestres". "Se você se muda para os subúrbios, vai usar carro para ir até um parque ou para dirigir de um ambiente fechado para outro", diz. As crianças também podem incentivar a inovação.

"As crianças possuem um lado irracional", acrescenta, e "aceitam mudanças mais facilmente".

No distrito de King’s Cross, no centro de Londres, a presença de crianças subindo em trepa-trepas em parques e correndo em fontes tem beneficiado o movimento dos estabelecimentos comerciais, diz Anthea Harries, diretora de gestão de ativos da Argent, construtora responsável por um complexo grande na região que abriga a Sony Music e a Google. "Profissionais corporativos curtem a vibração que as crianças trazem para o lugar."

Segundo Harries, os bolsões de Londres que são cheios de escritórios ou são ocupados principalmente por teatros e restaurantes "podem ter um ambiente muito corporativo, muito convencional".

E podem parecer muito vazios quando os funcionários vão para casa após o trabalho. O centro londrino, que historicamente abriga bancos e firmas de advocacia, não crianças, tem se esforçado nos últimos anos para atrair visitantes fora do horário comercial.

A energia caótica é humanizadora, argumenta o escritor Tim Gill, que defende o valor da brincadeira infantil. Para ele, as crianças "exemplificam um grau de tolerância e convivência, a ideia de que a vida não se resume ao trabalho, dinheiro e intensidade adulta inquieta. As crianças são um pouco irritantes. Elas não conhecem as regras, mas isso é parte do que faz uma cidade ser dinâmica e que torna a vida interessante." Se você excluir as crianças, diz ele, acaba em uma situação em que as diferentes gerações são segregadas e nunca saem de sua própria experiência, exceto em situações pagas e organizadas.

Mais de 20 anos atrás os sociólogos americanos Richard Lloyd e Terry Nichols Clark descreveram as cidades como "máquinas de entretenimento" para pessoas de alto poder aquisitivo e sem crianças. Hoje Lloyd receia que as cidades corram o risco de ficar "rarefeitas": se as famílias não puderem mais arcar com os custos, tampouco os artistas que geram parte da atração cultural poderão.

"As crianças são uma fonte de conectividade. Quando você envelhece e deixa de se interessar por pubs, aquela ligação com a comunidade se perde."

As crianças também são sinais da saúde de mais longo prazo de um bairro ou área. Em Hackney, Glanville as vê como a única maneira de construir "bairros sustentáveis que poderão resistir ao futuro". Áreas que estão cheias de moradores transitórios –pessoas que vivem lá por cinco anos e depois vão embora— não recebem tanto retorno de seus cidadãos, segundo Lange, que vive nos EUA.

"Projetar cidades para famílias também permite que as cidades retenham aqueles homens de 30 anos depois que se casam e têm filhos. Isso significa que eles se mudarão para apartamentos maiores, cobrirão trajetos menores para ir e vir do trabalho, pagarão impostos na cidade, usarão a biblioteca pública, construirão a comunidade através das escolas."

Ter filhos faz com que as pessoas comecem a prestar atenção a seu bairro e comecem a contribuir para ele, diz Lange. "São essas pessoas que lutam por ciclovias protegidas, que se candidatam aos conselhos escolares, que planejam festas de rua", afirma. Também tem um impacto sobre os serviços locais.

"O fato de cada vez mais londrinos jovens serem forçados a deixar a cidade devido à inacessibilidade da casa própria também vai impactar as condições de contratação e o estado dos serviços públicos", diz Tabbush, do Centre for London. Segundo ele, a capital tem o maior índice nacional de vagas em aberto para profissionais do Serviço Nacional de Saúde, devido em grande medida à escassez de enfermeiros.

O salário anual inicial de um enfermeiro em Londres é £ 32,4 mil (R$ 203,6 mil), o que significa que ele teria que gastar mais de 66% de seus rendimentos brutos para pagar o valor médio de um aluguel na capital. Problemas como esses só vão se intensificar à medida que a população londrina envelhece.

A falecida urbanista americana Jane Jacobs considerava as calçadas um espaço mais seguro para crianças do que playgrounds, porque a presença de adultos as monitora ou as convence a se comportar bem. Gill diz que as crianças "têm fome de vida e de experiências. Querem entender como os lugares funcionam e querem aprender a arte da vida urbana."

Lange concorda. "As crianças observam muito mais quando estão sendo empurradas em um carrinho ou estão a pé do que quando estão em um carro", diz. "A possibilidade de fazer seus próprios amigos no playground e, mais tarde, ir à casa de seus amigos sozinho, comprar um chá perolado ou andar de metrô, tudo isso encerra grandes benefícios sociais."

"Muitos dos males da infância contemporânea podem ser compensados com independência maior e acesso a pessoas e atividades mais diversas, coisas que são mais possíveis na vida urbana."

Na escola Randal Cremer, Riley está triste com a perspectiva de seus alunos sentirem falta da proximidade com o centro de Londres. "Você pode sair de sua casa, visitar as galerias e ver as pequenas firmas tech pipocando. Há um monte de coisas que podem dar alguma inspiração e transmitir que haverá algum tipo de futuro."

Riley se preocupa com a falta de mobilidade social se as crianças tiverem que deixar a área. "Se não estiverem morando aqui, não poderão ver quais são as possibilidades de Londres."

Ela faz uma pausa, e por um instante os sons de gritos e gargalhadas, de crianças pulando e jogando futebol lá fora, penetram na sala. Riley se reanima: "Vamos fazer tudo para que a criançada tenha o melhor ano possível. Com muita alegria."

Tradução de Clara Allain

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