Portugal rompe acordo de reciprocidade para advogados brasileiros

Ordem dos Advogados lusa justifica decisão com 'diferença notória na prática jurídica' e 'sérios problemas de adaptação'

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Lisboa

A Ordem dos Advogados de Portugal (OAP) rompeu, de forma unilateral, o acordo de reciprocidade que facilitava a brasileiros exercer a profissão no país. A decisão, publicada na terça (4), passa a valer nesta quarta (5) e afeta apenas novas solicitações —processos em andamento terão continuidade, e advogados brasileiros que já haviam obtido o registro poderão seguir atuando normalmente no país.

Presente nos estatutos da entidade portuguesa desde 2015, o pacto garantia que advogados brasileiros não precisassem revalidar seus diplomas nem fazer provas adicionais para atuar em território luso, sendo suficiente a inscrição válida e em atividade na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

Com o fim da reciprocidade, os brasileiros que desejarem trabalhar em Portugal estarão sujeitos aos mesmos trâmites que se aplicam a advogados estrangeiros de fora da União Europeia.

Bonde no bairro de Alfama, em Lisboa, capital de Portugal
Bonde no bairro de Alfama, em Lisboa, capital de Portugal - Pedro Nunes - 16.fev.22/Reuters

Em nota, a entidade justificou a mudança afirmando que há "diferença notória na prática jurídica em Portugal e no Brasil" e citando o que seriam "sérios problemas" de adaptação dos profissionais brasileiros.

"Existem sérias e notórias dificuldades na adaptação dos advogados brasileiros ao regime jurídico português, à legislação substantiva e processual e às plataformas jurídicas, o que faz perigar direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses e dos brasileiros."

Entre os brasileiros, porém, prevalece a percepção de que a decisão visa a proteger o mercado para os profissionais lusos. Hoje, 9,3% dos advogados registrados no país europeu são brasileiros. No universo dos quase 34 mil profissionais inscritos na Ordem dos Advogados de Portugal, 3.170 são brasileiros.

Brasileiros também afirmam que o caso tem semelhanças com a chamada "crise dos dentistas" —no começo da década de 1990, diante da chegada de muitos profissionais do Brasil, entidades portuguesas começaram a pressionar pela limitação da atuação clínica de brasileiros.

O direito no Brasil, antiga colônia de Portugal, tem uma base comum com o lusitano. As primeiras faculdades de direito em território brasileiro só surgem cinco anos após a Independência, em 1827.

Até aquele momento, a maioria dos bacharéis em direito, juristas e advogados que atuavam no Brasil era formada pela Universidade de Coimbra, em Portugal. As bases comuns são frequentemente evocadas em livros de direito comparado, havendo também um grande volume de pesquisas de mestrado e doutorado –nos dois lados do Atlântico– que se dedicam a esmiuçar semelhanças e diferenças.

Para a OAP, "embora possa ter existido uma matriz de base comum", as diferenças se tornaram demasiadamente profundas. "As diferenças entre os regimes jurídicos dos dois países são cada vez mais gritantes, existindo mecanismos e figuras jurídicas em Portugal que não existem no Brasil e vice-versa."

A representação lusa questiona ainda os mecanismos para assegurar a qualidade do trabalho dos profissionais diante desse cenário. "Como podem as ordens [de Brasil e Portugal] garantir aos cidadãos portugueses e brasileiros que estão assegurados seus direitos, liberdades e garantias se esses profissionais podem se inscrever sem que as ordens verifiquem os seus efetivos conhecimentos?"

O presidente da OAB, Beto Simonetti, afirmou ter sido surpreendido pelo anúncio, embora a intenção de limitar a entrada de profissionais brasileiros já tivesse sido comunicada à instituição em uma reunião em março. Ele prometeu agir para salvaguardar os brasileiros.

"A OAB tomará todas as medidas cabíveis para defender os direitos dos brasileiros aptos a advogar em Portugal ou que façam jus a benefícios decorrentes do convênio do qual a Ordem portuguesa está se retirando", afirmou ele no site da entidade.

Ao criticar o teor das reivindicações dos portugueses, Simonetti também se disse contrário a "qualquer mudança que validasse textos imbuídos de discriminação e preconceito". "A mentalidade colonial já foi derrotada e só encontra lugar nos livros de história, não mais no dia a dia das duas nações." Apesar do tom duro da crítica, o presidente da OAB afirma que pretende retomar o diálogo com os portugueses.

Ainda segundo a entidade, advogados portugueses no Brasil inscritos na OAB –cerca de 1.700– poderão continuar trabalhando no país. Novos pedidos, entretanto, serão suspensos.

Em resposta à Folha em dezembro de 2022, o ex-presidente da ordem portuguesa Luís Menezes Leitão classificou a reciprocidade de positiva, "tendo surgido apenas algumas dificuldades devido à falta de formação dos profissionais sobre as regras específicas de cada um dos ordenamentos".

Dados do Conselho da Europa são em geral apontados como indícios de uma certa saturação do mercado em Portugal. Em 2020, o país registrava 2,5 vezes a média europeia de advogados. Eram 321,63 profissionais por 100 mil habitantes —a média regional era de 134,51.

Impulsionados pelo aumento da imigração brasileira, muitos advogados abraçaram a área do direito migratório de nacionalidade. Também há forte atuação de profissionais em segmentos como direito empresarial e imobiliário, inclusive com escritórios e sociedades inteiramente formados por brasileiros.

"Desqualificaram os profissionais brasileiros para justificar essa discricionariedade", diz a advogada luso-brasileira Raphaela Souza, sócia de um escritório em Lisboa. Nas redes, os profissionais brasileiros têm se mostrado apreensivos quanto a possíveis entraves quando precisarem renovar a cédula profissional.

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