Prefeitura de Lisboa é acusada de boicotar memorial da escravatura

Monumento com obra de artista angolano foi aprovado há cinco anos na capital lusa, mas ainda não foi erguido

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Lisboa

Um dos projetos vencedores de uma consulta pública em 2017, o primeiro memorial da escravidão em Portugal, ainda não saiu do papel. Agora, a organização responsável pela proposta acusa Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, cargo equivalente ao de prefeito, de boicotar a obra.

Em carta aberta, a Associação de Afrodescendentes (Djass) detalha o que considera serem entraves impostos pela administração municipal. A entidade acusa a Câmara de tentar mudar o memorial para uma área remota da cidade e de usar imagens de concepção não oficiais da obra –feitas por um arquiteto não vinculado ao projeto– para embasar um parecer que sustentaria a proposta de alteração do local.

Projeto da instalação 'Plantação-Prosperidade e Pesadelo', do artista angolano Kiluanji Kia Henda, escolhido para o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, em Lisboa
Projeto da instalação 'Plantação-Prosperidade e Pesadelo', do artista angolano Kiluanji Kia Henda, escolhido para o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, em Lisboa - Divulgação

"Esta conduta revela que o Executivo de Lisboa não só não valoriza o projeto como parece querer impedir a sua concretização", afirma a associação. "Estamos perante aquilo que não podemos deixar de considerar uma estratégia de obstrução e boicote ao memorial por parte do atual Executivo municipal."

Historiadores estimam que, entre os séculos 15 e 19, Portugal tenha participado do comércio de cerca de 6 milhões de pessoas escravizadas. Oficialmente, o país foi um dos primeiros a proibir a escravidão, por meio de uma lei de 1761. A regra, porém, teve baixíssimo impacto, já que só era aplicada na metrópole e não valia para as colônias lusas, onde a prática e seus lucrativos negócios estavam estabelecidos.

Seu passado escravocrata, assim como o legado de exploração colonial, ainda é motivo de controvérsia no país. O memorial foi aprovado no orçamento de 2017/2018, e as negociações para a implementação começaram pouco depois. Em março de 2020, após um concurso público e um processo de participação popular, a proposta do artista angolano Kiluanji Kia Henda saiu vencedora. Batizada de "Plantação - Prosperidade e Pesadelo", a obra previa a instalação de 540 canas-de-açúcar em alumínio preto.

Por sugestão da própria prefeitura, o projeto havia sido direcionado para o largo José Saramago, local de destaque em frente à fundação homônima e próxima a cartões-postais, como a praça do Comércio.

A pandemia, entretanto, atrasou os trâmites e aumentou os custos das matérias-primas da iniciativa, orçada inicialmente em € 150 mil (R$ 785,2 mil). Segundo a Associação de Afrodescendentes, apesar dos desafios impostos pela Covid, o projeto continuava em implementação, inclusive com a criação de dois protótipos e adequações na proposta original, feitas para diminuir a quantidade das canas-de-açúcar da instalação e adequar o trabalho às obras de requalificação do espaço.

As eleições de 2021 então trouxeram uma reviravolta política à cidade. O então presidente da Câmara, Fernando Medina, do Partido Socialista, perdeu o pleito para Moedas, do PSD, de centro-direita.

Segundo a Djass, havia a expectativa de que a nova administração, após o período de transição, entrasse em contato para retomar a implementação do memorial, o que não teria acontecido. "Face ao silêncio do novo Executivo", a organização diz ter solicitado por conta própria uma reunião, que só viria a se concretizar em setembro de 2022, quase um ano após a tomada de posse da atual administração.

No encontro, a prefeitura afirmou que o início da construção dependia da aprovação da Direção-Geral do Patrimônio Cultural, ligada ao governo nacional, e da Empresa de Estacionamentos de Lisboa. Em abril, a gestão municipal informou que ambas as entidades haviam reprovado o projeto. A associação de afrodescendentes contesta a elaboração dos pareceres e as imagens usadas na decisão.

O governo de Lisboa, por sua vez, refuta as acusações da Djass e afirma que há base técnica para a alteração do local do memorial. Um dos pontos citados é o possível impacto estrutural da obra, que seria instalada em cima de um estacionamento subterrâneo em que já há o registro de infiltrações.

"A Câmara Municipal honra seus compromissos, refuta acusações dilatórias e mantém a postura de diálogo e a procura de soluções que sempre pautou sua atuação desde que o Executivo iniciou conversações com a Djass", afirma uma nota assinada pelo vereador Diogo Moura.

O governo de Lisboa sugeriu ainda a transferência do memorial para uma outra área, descrita pela associação de afrodescendentes como uma via estreita e mais restrita. A proposta foi classificada de ofensiva pela entidade. "É uma localização inaceitável, que despromove e em nada dignifica o memorial."

A Câmara Municipal, outra vez, defendeu o novo espaço sugerido. "O local ora proposto, junto à Doca da Marinha, foi alvo de requalificação urbana recente, permitindo melhor relação com o rio, melhores acessibilidades e, historicamente, continua a ter grande relevância na história da escravatura na cidade."

O Executivo afirma ainda que tem mantido contato com a Djass por meio de reuniões e que se colocou à disposição para que a organização apresentasse eventuais alternativas. "Até hoje, a autarquia não recebeu resposta", afirma. Segundo a administração, as imagens usadas no parecer foram "disponibilizadas pelo arquiteto responsável pelo projeto na Câmara Municipal e articuladas com o autor [da obra]".

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