Descrição de chapéu The New York Times

Motorhome de luxo é nova suspeita ligada a juiz da Suprema Corte dos EUA

Clarence Thomas se vende como homem comum, mas recebe empréstimos e presentes de milionários sem revelar ao governo

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Jo Becker Julie Tate
The New York Times

O juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Clarence Thomas conheceu o veículo recreativo de seus sonhos em Phoenix, numa sexta-feira de novembro de 1999.

Como tinha algum tempo livre antes de um evento naquela noite, foi para uma revendedora próxima ao aeroporto. Lá estava um ônibus motorhome Prevost Le Mirage XL Marathon, com oito anos de fabricação, 12 metros de comprimento e chamas cor de laranja lambendo as laterais. Nas palavras de um de seus biógrafos, "ele chutou os pneus e subiu a bordo" e rapidamente selou um acordo com um aperto de mãos.

Algumas semanas mais tarde, Thomas saiu da revendedora dirigindo seu novo motorhome e mergulhou na sua mitologia autodefinida de homem comum que se ergueu com seus próprios esforços.

Lá está ele, atrás do volante durante uma rara entrevista de 2007 com o programa "60 Minutes", falando sobre como o ônibus convertido lhe permite escapar da "maldade que se vê em Washington". Ele menciona regularmente em seus discursos o seu amor por dirigir pelo coração dos Estados Unidos.

Homem negro de cabelo grisalho, um pouco careca, vestindo toga de juiz em cima de terno, olha para a câmera
O juiz da Suprema Corte americana Clarence Thomas posa para um retrato em grupo no tribunal, em Washington - Evelyn Hockstein/Reuters

Em um documentário financiado por admiradores conservadores, Thomas, que nasceu na pobreza na Geórgia, fala em tom sonhador sobre o costume de passar tempo com gente comum que ele encontra em seu caminho, em estacionamentos do Walmart e parques de trailers e motorhomes.

"Não vejo problema em ir à Europa, mas prefiro os EUA e ver as partes comuns dos EUA", disse aos diretores. "Há algo de normal nisso. Venho de uma família comum e prefiro andar com gente comum."

Mas há uma história não contada e muito mais complexa sobre as origens do motorhome de Thomas –uma história que não responde a uma série de perguntas sobre se o juiz recebeu e deixou de revelar um presente luxuoso de um amigo rico. Seu Prevost Marathon custou US$ 267.230 (R$ 1,3 milhão), segundo os documentos de propriedade obtidos pelo jornal The New York Times.

E Thomas, que nos anos seguintes diria a amigos que poupou e se privou de coisas para poder pagar pelo ônibus residencial, não o comprou sozinho. Na realidade, a aquisição foi financiada pelo menos em parte por Anthony Welters, amigo íntimo que fez fortuna no setor de saúde.

Welters fez um empréstimo a Thomas que, segundo especialistas, um banco provavelmente não teria dado –não apenas porque o magistrado já estava muito endividado, mas também porque o alto nível de customização da marca Marathon dificulta a avaliação de seus ônibus recreativos.

Em email, Welters escreveu: "Eis o que posso compartilhar: 25 anos atrás, emprestei dinheiro a um amigo, assim como já emprestei a outros amigos e familiares. Todos nós já estivemos de um lado ou outro dessa equação. Ele usou o dinheiro para comprar um veículo recreativo, que é uma paixão dele".

Mais ou menos nove anos mais tarde, "o empréstimo foi satisfeito", acrescentou. Ele enviou uma foto do documento original, com sua assinatura e a data de 22 de novembro de 2008 escrita à mão.

Mas, apesar de pedidos reiterados feitos por quase duas semanas, Welters não respondeu outras perguntas que seriam essenciais para a compreensão do arranjo que fez com Thomas.

Não revelou o valor do empréstimo, quanto o juiz lhe devolveu e se parte da dívida foi perdoada ou quitada de outra forma. Ele se negou a mostrar uma cópia do contrato de empréstimo –ele nem sequer disse se existiu um contrato. Tampouco quis revelar os termos básicos do empréstimo –por exemplo, se foram cobrados juros, quanto de juros, e se Thomas respeitou o cronograma de pagamento. Quando lhe pedimos que explicasse o que quis dizer quando falou que o empréstimo foi "satisfeito", ele não respondeu.

"‘Satisfeito’ não significa necessariamente que o empréstimo tenha sido pago", diz o advogado tributarista Michael Hamersley, que já depôs diante do Congresso. "‘Satisfeito’ também pode indicar que o credor perdoou a dívida ou que deixou de buscar seu pagamento." Thomas, por sua vez, não respondeu perguntas detalhadas sobre o empréstimo enviadas a ele por meio do porta-voz da Suprema Corte.

O silêncio deles serve para não deixar claro se Thomas tinha a obrigação de reportar a transação, sob os termos de um código de ética federal que prevê que os juízes da Suprema Corte devem divulgar certos presentes, dívidas e outras transações financeiras que possam criar conflitos de interesses.

Richard W. Painter, advogado que foi assessor de ética da Casa Branca no governo George W. Bush, diz que "juízes da Suprema Corte não devem aceitar empréstimos particulares de indivíduos ricos que não fazem parte de sua família". Se o fazem, diz, "somos obrigados a questionar por que um juiz da Suprema Corte está recorrendo a essa pessoa, não a uma instituição de crédito comercial, a não ser que o juiz esteja recebendo algo que de outro modo não receberia."

A descoberta do empréstimo pelo New York Times é a mais recente em uma série de revelações mostrando como benfeitores ricos presentearam Thomas e sua esposa, Virgínia, com uma série de benefícios: ajudando a custear as mensalidades escolares de seu sobrinho-neto, comprando e reformando a casa onde vive a mãe do juiz e convidando o casal Thomas para viagens nacionais e internacionais que incluíram percursos feitos em jatinhos particulares e um iate.

Thomas já apontou para diferentes interpretações das regras para defender o fato de ele não ter divulgado boa parte das benesses que já recebeu. Disse que foi informado que as viagens se enquadram na isenção de presentes que envolvem "hospitalidade pessoal" de amigos íntimos, por exemplo. Um advogado ligado ao casal Thomas alegou em nota que o juiz não precisou divulgar o pagamento das mensalidades escolares pois isso foi um presente dado a seu sobrinho-neto, que estava sob sua guarda legal, não a ele.

Quem levou Thomas a se render ao encanto do veículo de luxo foi Bernie Little, proprietário do hidroavião de corridas Miss Budweiser. Thomas disse à rede de TV C-SPAN em 2001 que, ao longo dos anos, Little foi dono de 20 a 25 ônibus motorhomes customizados. Naquele momento, um Prevost Marathon básico custava US$ 1 milhão. Dependendo dos acessórios e adicionais, poderia ser vendido por muito mais.

Na época, a fonte principal de renda de Thomas era seu salário de juiz da Suprema Corte, então US$ 167,9 mil por ano. Ele ainda não havia vendido sua autobiografia, e registros revelam que o casal tinha dívidas significativas: eles compraram sua casa em 1992 por US$ 552 mil com entrada de 5% e a refinanciaram dois anos mais tarde, contraindo nova hipoteca de US$ 496 mil a ser saldada em 15 anos. Além disso, já tinham pelo menos uma linha de crédito de entre US$ 15 mil e US$ 50 mil.

Assim, conforme o relato de Thomas, ele começou a procurar um Prevost usado por sugestão de Little, um que tivesse milhagem suficiente para reduzir seu preço. "A curva de desvalorização é muito acentuada", ele fez questão de destacar na entrevista à C-SPAN em 2001.

Os documentos de propriedade mostram que, quando o motorhome foi vendido ao casal Thomas em 1999 por US$ 267.230, estava com 150 mil km rodados. O ônibus tinha assentos de couro macio, cozinha, banheiro e quarto. Além das chamas alaranjadas laterais, tinha um grande Pégaso pintado na traseira, segundo Jason Mang, neto da proprietária anterior, Bonnie Owenby. "Era superluxo, realmente cafona."

Em 19 de novembro de 1991, depois de ver o ônibus no estacionamento da Desert West Coach, em Phoenix, e reservá-lo para compra posterior, Thomas foi a um jantar do instituto conservador Goldwater. Naquela noite, disse que nunca havia sonhado em ser juiz federal. "Queria ser rico, pura e simplesmente."

Wayne Mullis, dono da Desert West, que não existe mais, disse em entrevista que Thomas nunca falou com ele sobre a possibilidade de obter financiamento tradicional para a aquisição. "Pelo que eu sei, ele mesmo pagou." Os termos do empréstimo concedido por Welters não estão claros, mas não há dúvidas em relação às regras que regem empréstimos de mais de US$ 10 mil entre familiares e amigos.

Empréstimos podem ser reclassificados como doações ou renda para o devedor, que teriam que ser notificados pelo juiz sob as regras de transparência da Suprema Corte, se parte da dívida é perdoada ou dada como irrecuperável. Mas, mesmo que o credor não adote essas medidas, um empréstimo ainda pode ser classificado como presente ou renda que deve ser divulgado se não se enquadra em certos critérios.

Os termos do empréstimo devem ser definidos em um acordo escrito, disseram tributaristas, com um cronograma de pagamento regular e claramente estabelecido. Os credores devem cobrar pelo menos a taxa de juros federal aplicável, que era um pouco acima de 6% em dezembro de 1999, quando foi fechado o contrato de compra do ônibus recreativo. Se o devedor está em atraso com os pagamentos, o credor deve fazer um esforço de boa-fé para cobrar a dívida, mesmo a ponto de ir à Justiça.

"Se não é assim, é mais um presente que um empréstimo", diz Rich Lahijani, diretor tributário da Edelman Financial Engines, empresa independente de planejamento de patrimônio e assessoria de investimentos.

Os documentos de propriedade em mãos do Departamento de Veículos Automotores da Virgínia não contêm informação detalhada sobre o empréstimo em si. O que eles revelam é que, quando Thomas e sua mulher levaram o ônibus recreativo para a casa deles, na Virgínia, eles o registraram no condado de Prince William, que não cobra imposto de propriedade pessoal sobre motorhomes guardados lá, o que não é o caso do condado de Fairfax, onde eles moram.

Ainda no final do mês passado, quando o New York Times reviu os documentos, eles ainda traziam o nome de Welters como titular da garantia, apesar da liberação assinada que ele afirmou ter dado a Thomas em 2008 para que este pudesse obter um documento de propriedade novo e quitado.

Welters disse que não sabia explicar por que seu nome ainda constava como titular da garantia. Disse que, depois que entregou os papéis a Thomas, "não sei que processos o devedor deveria haver seguido". (Os documentos deveriam ter sido levados ao Departamento de Veículos Automotores, no qual a liberação da garantia teria sido registrada e teria sido emitido um novo documento de propriedade.)

Quanto a Clarence Thomas, esse foi um dos temas que ele se negou a comentar com o New York Times.

Tradução de Clara Allain

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