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Carlos Mora

No Equador, violência parecia algo da ficção, mas ela nos invadiu

Assassinato do candidato presidencial Fernando Villavicencio expõe construção do país do confronto

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Carlos Mora

jornalista equatoriano e secretário-geral da EditoRed, associação de editores de mídia da União Européia e da América Latina

No Equador, a violência nos invadiu dia após dia, primeiro como uma chuva que vazou por um furo imperceptível e depois como um aguaceiro que inundou a casa por um telhado deteriorado até virar um furacão que carrega tudo. Pouco a pouco, a narcoviolência foi penetrando em nossas casas e no cotidiano dos equatorianos; apenas duas décadas atrás nos gabávamos de o Equador ser uma ilha de paz.

Nós nos descuidamos. Pensamos que a violência estivesse longe, que só existisse na ficção. Era coisa do cinema, das séries, das telenovelas, que noite a noite nos foram mostrando como era o narcotráfico.

Pessoas tentam se proteger de tiros no local em que o candidato à Presidência do Equador Fernando Villavicencio foi morto, em Quito
Pessoas tentam se proteger de tiros no local em que o candidato à Presidência do Equador Fernando Villavicencio foi morto, em Quito - Stringer - 9.ago.23/AFP

E não parecia tão ruim assim. Você ganhava dinheiro fácil, vivia cercado de luxos, vestia-se bem; as pessoas te respeitavam, te temiam. Para enfrentar os inimigos, você contratava um exército e pronto. Você via o protagonista saindo lá de baixo, da miséria, de algum lugar de marginalidade, e a partir dela ele criava um novo poder, um poder maior que aquele dos poderosos do passado, sempre tão preguiçosos.

Essa ética e essa estética foram se normalizando pouco a pouco, convertendo-se em paisagem cotidiana, reconhecível, imitável. Foram penetrando fundo, entre um comercial e outro.

Nós nos descuidamos. Pensávamos que a narcoviolência real, não a da ficção, acontecesse em outros países. Alguns próximos, outros distantes, mas fora daqui. As fronteiras nos protegiam; sim, as fronteiras, essas linhas imaginárias. Mas justamente ali, em especial na fronteira norte do Equador, a chuva do narcotráfico penetrou por um buraco cada vez maior no telhado e foi inundando tudo.

Um buraco criado pela ineficiência, quando não a ausência do Estado nos aspectos-chave da educação, da saúde e do emprego. Os entorpecentes foram se infiltrando pouco a pouco por essa fronteira porosa.

As autoridades repetiam diante de câmeras e eleitores: "Somos apenas um país de passagem da droga", como se isso já não fosse muito grave. O problema de fato, insistiam em nos dizer, acontecia nos lugares onde produzem a droga. É ali que as pessoas se matam pelo poder. É onde sequestram e extorquem.

Aqui, não –aqui é preciso barrar carregamentos. E talvez fosse verdade. Mas a única coisa que o narcotráfico não sabe fazer é parar. Então precisava melhorar esse trânsito, com o controle de portos, rodovias, pistas aéreas... Precisava garantir impunidade, controlando tribunais e presídios. E viu que podia conseguir isso com dinheiro –e, mesmo assim, ainda lhe sobrava dinheiro. Ou com ameaças –tudo bem, não tinham escrúpulos. Mas viu que também era muito conveniente fazê-lo cooptando o poder político e judicial –sem problemas, sobravam-lhe dinheiro e ameaças.

Nós nos descuidamos. O narcotráfico continuou a avançar. Se você já tinha o melhor país para o trânsito de drogas rumo aos grandes mercados, por que não criar também um mercado local? E, assim, crianças e jovens foram procurados em escolas e colégios para convertê-los em consumidores e microtraficantes, dependentes da droga que precisam vender para, por sua vez, terem dinheiro para consumir.

E as guerras das gangues locais que disputam o controle desse negócio de formiguinha chegaram aos bairros e às portas de nossas casas. Em muitos lares, as mães veem como seus filhos ficam amarrados, talvez para sempre, a uns saquinhos que custam US$ 1 ou pouco mais, contendo alguns gramas mínimos de droga que eles precisam vender ou consumir para continuar vivendo... Perdão, morrendo.

Nós nos descuidamos. A violência foi penetrando as nossas casas e a vida pública, e fomos construindo o país do confronto. Houve quem fizesse do confronto uma forma de governar. O pobre tinha que enfrentar o rico explorador; o Sul empobrecido, o Norte hegemônico; tinha de enfrentar o progressista, tinha de enfrentar o neoliberal, o militante tinha de enfrentar o jornalista mentiroso; e o patriota, o alienado.

Em meio a discursos de progresso e bem-estar, um presidente rasgava jornais, insultava adversários, caluniava os políticos de outras vertentes –tudo em rede nacional e, com certeza, com os aplausos da maioria. E, assim, alcançar o poder para se impor sobre o outro passou a ser a tarefa da política. Mais do que o "dividir para vencer", procurou-se aniquilar para vencer. E, se o presidente o fazia, qualquer um podia.

Mas não apenas seguidores, mas também seus opositores. E então o vice-versa reinou. Os liberais contra a esquerda ladra, os geradores de riqueza contra os atiradores de pedras, o Norte desenvolvido contra o Sul falido, o jornalista contra o político que sempre engana. Depois disso, qualquer campo de confronto era possível: o ecologista engajado versus o extrativista ambicioso, o petroleiro responsável contra o ambientalista dogmático. Fogo contra fogo em qualquer área ou assunto. Foi disso que se trataram as relações sociais e políticas no Equador nos últimos 15 anos. Sempre descartando a razão do outro.

E nós jogamos o jogo. Nos tornamos uma sociedade de bons e maus. Eu, é claro, sou o bom, nunca o mau, sou aquele que sempre está com a razão, que sempre faz o que é certo. O outro é o mau, o equivocado, o retrógrado, o tolo, o ingênuo, o malfeitor, o sujeito de má-fé. Você não acredita no que estou dizendo?

Leia com atenção qualquer declaração política do Equador do último ano. Você verá que o formato do discurso, seja de qual lado político for, é: nós, os bons, fazemos o correto e venceremos os outros, os maus, os que agem de forma desonesta. E isso que é amplificado diariamente na política é vivenciado também entre os cidadãos, que muitas vezes por isso não se identificam com aquilo com o qual estão a favor, mas com o que estão contra. Isso não é luta de classes, são lutas de todos os tipos.

E nos enganamos. Não compreendemos o grau de penetração do negócio do narcotráfico. Assim, quando em março de 2018 grupos armados da Colômbia sequestraram uma equipe de jornalistas do jornal El Comercio, nós, seus colegas, pensamos que fosse questão de resistir, de esperar que as negociações transcorressem para tê-los de volta. Não, não lhes convinha matar jornalistas que nada tinham a ver com a guerra deles. Não, não os matariam –não quando levassem em conta que o país inteiro estava acompanhando o caso, que havia uma mobilização geral pedindo sua libertação.... Mas sim, os mataram.

Mataram Efraín Segarra, Javier Ortega e Paúl Rivas, companheiros inesquecíveis. O assassinato deles nos mostrou que o narcotráfico, com seus tentáculos, estava disposto a tudo para conservar seu poder. Depois disso vieram mais intimidações contra a imprensa, ameaças contra candidatos, assassinatos de autoridades eleitas nas urnas, e, agora, o magnicídio do candidato presidencial Fernando Villavicencio.

E pode ser que haja outros que estejam se enganando. Talvez fiquem chocados vendo esse drama equatoriano, vendo-o da Europa, por exemplo. Talvez compartilhem essa dor, mas no final do dia digam, como nós dissemos, "é algo que está distante de nós". E não se deem conta de que os ventos que levam a tempestade ao Equador vêm em grande parte da Europa. São ventos carregados de euros, de dólares, provenientes de pessoas capazes de pagar somas incríveis por um pó branco do qual dependem para estar bem, para se divertir ou para satisfazer uma dependência doentia que consome sua vida.

Tudo isso para a satisfação dos narcotraficantes, que, com tanto dinheiro, seguem criando países de pessoas que enxergam como única solução ir embora. Mas para onde? Para EUA, claro, ou Europa, lugares onde talvez tenham muita dificuldade em entrar, onde talvez não sejam bem recebidos e onde, portanto, a violência deitará raízes, crescendo pouco a pouco, tomando conta de tudo de forma irrefreável.

Existe outra saída que não seja o êxodo? A mais pacífica é que todos deixem de consumir drogas, pois o consumo mantém esse negócio criminoso. A mais completa é que o Estado faça seu papel, que se faça presente com suas instituições para dar chances reais e positivas a crianças e jovens, especialmente nas zonas de fronteira. Mas isso parece ser uma competição para identificar qual solução é a mais utópica.

Quem sabe não devemos começar por deixar de nos descuidar, por entender melhor o que acontece à nossa volta, em nosso país, em nosso continente, em nosso mundo. Não olhar para o outro lado, mas encarar essa realidade muito dura de frente para mudá-la, não apenas para suportá-la.

Tradução de Clara Allain

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