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Alerta de Lula na ONU sobre Guatemala é bem-vindo, diz presidente eleito

Petista fala em 'risco de golpe' no país centro-americano ao abrir Assembleia-Geral e é criticado por atual líder guatemalteco

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São Paulo

O eco de Lula (PT) às denúncias de um possível golpe de Estado na Guatemala foi uma surpresa "extremamente agradável" e "claramente bem-vinda", diz o presidente eleito do país centro-americano, Bernardo Arévalo.

Na última terça-feira (19), o petista usou parte do tradicional discurso de abertura brasileiro na Assembleia-Geral da ONU para mencionar o "risco de um golpe que impediria a posse do vencedor de eleições democráticas" na Guatemala.

"É uma informação que reflete o que temos denunciado", afirmou Arévalo, cujo partido chegou a ser suspenso após a vitória nas urnas, à Folha.

O presidente eleito da Guatemala, Bernardo Arévalo, durante entrevista em sua casa, na capital do país - Pilar Olivares - 22.ago.23/Reuters

Após um desempenho surpreendente no primeiro turno, o progressista conquistou a vitória na segunda rodada, em agosto, com um discurso anticorrupção —o problema virou uma ferida aberta no país após a onda de perseguição contra ex-membros da Cicig (Comissão Internacional Contra a Impunidade da Guatemala), responsável por investigações contra diversos figurões da política local até ser dissolvida, em 2019.

A afirmação de Lula não apareceu nas agitadas redes sociais de Arévalo, trunfo do político na corrida pela Presidência, mas virou arma na mão de opositores, que usaram seus perfis para lembrar os imbróglios jurídicos envolvendo o petista e repetir a informação falsa de que houve fraude nas eleições do Brasil.

Lula disse em seu discurso na Assembleia-Geral da ONU que há um risco de golpe na Guatemala, como o senhor denunciou. O que achou desse posicionamento?
É uma informação que reflete o que temos denunciado. Essa série de ações judiciais ilegais e obscuras tenta alterar a ordem constitucional e burlar o resultado das eleições em duas rodadas e, consequentemente, constitui um golpe de Estado.

Esperava esse tipo de afirmação na ONU?
Foi extremamente agradável. Na verdade, eu não esperava. É claramente bem-vinda.

Alejandro Giammattei [atual presidente guatemalteco], por sua vez, qualificou a informação de inverdade. O que pensa dessa resposta?
É uma resposta que está em absoluto contraste com o que acontece no país. É uma resposta que tenta tapar o sol com a peneira, porque há uma tentativa de subverter a ordem constitucional.

O senhor confia na passagem do poder por Giammattei?
Estamos embarcados nesse processo de transição e sabemos que, legalmente, não há essa opção [de não passar o bastão]. Confiamos que a passagem de poder será realizada.

Qual então é o maior obstáculo para sua posse?
Neste momento, a procuradoria que está a cargo do procurador [Rafael] Curruchiche desenvolve uma série de ações ilegais e espúrias que vão contra nossa ordem legal. Estão ameaçando a democracia em uma ação que é feita em conluio entre a procuradora-geral [Consuelo Porras], Curruchiche, outros procuradores dentro do Ministério Público e o juiz Freddy Orellana. Não sabemos se há alguém por trás deles, mas a agressão formal está sendo realizada pelo Ministério Público.

A Guatemala é palco de protestos que pedem a renúncia, como o senhor também pediu, de Consuelo Porras, Freddy Orellana e Rafael Curruchiche. O senhor apoia essas manifestações?
A população está protestando de forma espontânea contra o assalto ao processo democrático. Nós convocamos a primeira manifestação em apoio à entrega de uma ação judicial, há dois dias. Pedimos às pessoas que nos acompanhassem ao Tribunal de Justiça e que se reunissem em diferentes partes do país, o que aconteceu.

Dezenas de juízes e promotores estão exilados desde 2009, quando a Cicig foi dissolvida. Até hoje, o jornalista José Rubén Zamora está preso. O que pretende fazer a esse respeito?
Ao longo de toda a campanha, apontamos que o Ministério Público tem criminalizado, assediado e perseguido operadores de justiça, juízes, promotores, advogados, mas também jornalistas, que são parte do esforço de não se dobrar à corrupção.

A situação de José Rubén Zamora é um caso claríssimo em que as instituições foram ins trumentalizadas para puni-lo por suas denúncias, mas também para fazer um aviso sobre os riscos de continuar exercendo essa crítica. Há ainda o caso de Virginia La Parra [procuradora anticorrupção presa após apresentar queixa contra um juiz por suspeitar que ele havia compartilhado informações confidenciais], uma advogada que também está presa de forma espúria. Nosso compromisso é acabar com essas práticas na medida em que isso passe pelo Executivo.

O senhor prometeu uma nova primavera democrática. A primeira, que seu pai, Juan José Arévalo, inaugurou, foi interrompida por um golpe no sucessor dele.
Bem, eu acredito que o que deve ficar claro é que, apesar de essa revolução ter terminado em 1954, o país passou do século 19 ao século 20 graças a esse período, que estabeleceu as bases de uma modernidade que não pôde mais ser revertida pelos governos posteriores. Nesse sentido, apesar de não ter continuado, ela deixou bases institucionais.

Neste momento nos cabe retomar essa visão, esse espírito. Não os programas e os políticos, mas essa visão de criar instituições democráticas que sirvam ao conjunto da população para poder seguir em frente.

É quase um consenso na academia e na opinião pública que a corrupção está enraizada no sistema político e econômico guatemalteco. Como o senhor pode promover uma mudança se toda essa estrutura está intacta?
Esse processo vai exigir muito esforço, porque o problema já tem um caráter sistêmico. Mas o fato de haver instituições cooptadas pela corrupção não significa que todas as pessoas estão envolvidas na corrupção. Prova disso é que estou falando como presidente eleito a partir de uma campanha apresentada como anticorrupção —o que mostra que a maioria da população está cansada. O mesmo acontece dentro das instituições do Estado.

O trabalho será começar a transformar, em primeiro lugar, o que nos cabe, que é o Executivo, e gradualmente começar esse processo de recuperação institucional em outras esferas.

Falando do Legislativo, o Movimento Semilla [partido de Arévalo] é a terceira força na nova formação do Congresso, e os partidos de sua adversária e do atual presidente, juntos, têm mais de 40% das cadeiras. O senhor pretende negociar com esses deputados e chamá-los para compor o novo governo?
Não, nós não estamos fazendo alianças para a integração do novo governo, especialmente com partidos que se prestaram à corrupção. Isso é certo. No Congresso, trabalharemos de acordo com os diferentes projetos de lei que cheguem.

Mas como pretendem aprovar as mudanças que mencionou sem o apoio dessa força tão importante no Congresso?
Não vamos pactuar com forças como essas, mas vamos começar a tratar os acordos em torno de cada peça de legislação que chegue, não como acordos gerais de trabalho. Isso permitirá discussões distintas a partir de cada um desses assuntos.


Raio-x | Bernardo Arévalo, 64

Sociólogo de centro-esquerda, atuou como diplomata e embaixador da Guatemala antes de ser eleito deputado, em 2020. Líder do Movimento Semilla, venceu as eleições de 2023 com um discurso anticorrupção e com a ajuda da memória que a população tem de seu pai, o ex-presidente Juan José Arévalo, eleito nas primeiras eleições transparentes do país, na década de 1940.

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