Brasil assume presidência do Conselho de Segurança com impasse sobre Haiti

Resolução sobre envio de missão multinacional para ajudar polícia do país caribenho polariza a mais alta instância da ONU

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São Paulo

O Brasil assume neste domingo (1º) a presidência rotativa do Conselho de Segurança, a mais alta instância da ONU, em um momento de impasse no órgão. A expectativa de aprovar uma missão de ajuda ao Haiti tem gerado atrito entre os países-membros.

Na mesa está a proposta redigida por Estados Unidos e Equador para o conselho aprovar uma missão multinacional que, liderada pelo Quênia, enviaria policiais para ajudar a Polícia Nacional Haitiana em ao menos três frentes: treinamento, combate a gangues armadas e proteção de instalações de infraestrutura crítica.

Moradores carregam pertences pessoais ao terem de deixar suas casas na região de Carrefour Feuilless, na capital Porto Príncipe, devido à violência armada
Moradores carregam pertences pessoais ao terem de deixar suas casas na região de Carrefour Feuilless, na capital Porto Príncipe, devido à violência armada - Ralph Tedy Erol - 15.ago.23/Reuters

O impasse está justamente no grau de participação da ONU. E o descontentamento é manifestado por China e Rússia, que ao longo da última semana travaram o debate da proposta americana exigindo adendos ao texto, que já está em sua sexta versão.

O debate sobre a missão é marcado por certo ineditismo —sob a chancela do secretário-geral da ONU, António Guterres, a ideia é que esta seja uma missão de paz "não onusiana". Ou seja: que não conte com os capacetes azuis, mas tenha o endosso da organização.

O desejo é fruto de uma percepção corrente de que o modelo tradicional de missão de paz se esgotou, especialmente após experiências do tipo no continente africano.

Agora, o principal ponto de discordância está em inserir ou não a missão no guarda-chuva do Capítulo 7 da Carta da ONU, comumente usado em casos de missão de paz. O problema é que o mecanismo libera o uso da força, sob o aval do conselho, quando isso for necessário para "restabelecer a paz e a segurança internacionais".

A Minustah —acrônimo francês para Missão para a Estabilização no Haiti—, que esteve no país de 2004 a 2017 com protagonismo de militares do Brasil, foi gerida sob o manto do Capítulo 7.

Pequim e Moscou defendem que as Nações Unidas apenas endossem o envio da missão multinacional, sem maiores comprometimentos como os previstos nos artigos desse capítulo.

Por outro lado, o mecanismo também é visto como uma forma de legitimar a missão, em especial nos fóruns domésticos —no Quênia, há forte oposição interna ao envio de policiais para o Haiti. Outros países, como os caribenhos Jamaica e Bahamas, que também prometeram enviar forças, fazem o mesmo pedido.

De olho nisso, o próprio premiê do Haiti, Ariel Henry, que na última semana pediu no púlpito da ONU que a missão seja aprovada o mais rápido possível, vem explicitando essa demanda. Carta enviada pelo primeiro-ministro a Guterres no último dia 22 pede explicitamente que a aprovação se dê sob o guarda-chuva do Capítulo 7.

"Essa é uma exigência legal e política, tanto para eles [os quenianos] como para nós", diz o texto ao qual a reportagem teve acesso.

Pedido semelhante foi feito pelo secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, em Nova York, na última semana. "Trata-se de um requisito legal para muitos países enviarem policiais", disse. "Sabemos que eles têm vontade, mas precisam do apoio de uma resolução do Capítulo 7."

Até aqui, apenas Quênia —que se comprometeu com o envio de mil agentes— e alguns países caribenhos se somaram à força. Os EUA, segundo frisa o governo Biden, participariam apenas com apoio financeiro e técnico. O Brasil, sob o governo Lula, descartou enviar homens. Ainda há, no entanto, a expectativa de que, se a resolução for aprovada sob a égide do conflituoso capítulo, mais nações aprovem o envio de policiais.

A autorização para o uso da força não foi, porém, a única trava.

Outra demanda chinesa se tornou um nó para os americanos, que acabaram por acolhê-la na última sexta-feira (29): a exigência de que seja alargado o mecanismo de embargo para proibir a exportação de armas para o Haiti, exceto quando forem destinadas ao governo —o que afetaria, em especial, os EUA, de onde sai a maior parte das armas que entram em território haitiano por fronteiras pouco vigiadas.

Relatório da ONU divulgado em março deste ano apontou que cada vez mais armas sofisticadas são traficadas para o Haiti a partir da Flórida. Elas entram no país por meio da fronteira com a República Dominicana, por via aérea, em pistas clandestinas, e via marítima.

"Armas populares vendidas por US$ 400 ou US$ 500 [cerca de R$ 2.000 e R$ 2.500, respectivamente, na conversão atual] em lojas de armas de fogo licenciadas pelo governo ou em feiras privadas nos EUA podem ser revendidas por até US$ 10 mil [R$ 50 mil] no Haiti", disse o relatório.

Desde que o Conselho de Segurança concordou, há um ano, em penalizar figuras envolvidas na desestabilização do Haiti, apenas uma delas foi alvo de sanções: o ex-policial Jimmy Chérizier, conhecido como "Barbecue" e líder da coalizão de gangues G9.

Enquanto isso, segundo relataram interlocutores à Folha, houve uma dupla demanda brasileira apresentada aos americanos e atendida: incluir no texto da resolução um chamado para a missão não ser apenas securitária, mas também focar o desenvolvimento haitiano e a possibilidade de eleições o mais breve possível.

O premiê Ariel Henry assumiu o cargo em 2021 após o assassinato do presidente Jovenel Moïse. Impopular, comanda um governo em que não há nem sequer um membro eleito —as últimas eleições haitianas foram em 2016, e não há previsão de um novo pleito por ora.

A presidência do Brasil no Conselho de Segurança, na qual Brasília buscará pautar também a reforma do órgão, estende-se até o fim de outubro. A próxima a chefiar a instituição é a China.

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