Descrição de chapéu violência América Latina

Gangues do Haiti ameaçam derrubar governo e expulsar forças internacionais

Fechamento de fronteiras com República Dominicana escala crise regional e confere novo protagonismo a grupos armados

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São Paulo

O agravamento da crise local no Haiti após o fechamento das fronteiras com a República Dominicana, país com o qual divide a ilha de Hispaniola no mar do Caribe, conferiu novo fôlego às gangues urbanas locais, cujo principal líder, o ex-policial Jimmy Chérizier, tem encampado um discurso nacionalista e de escalada da violência.

Conhecido como "Barbecue", o líder da coalizão de gangues G9 foi às ruas nesta quarta-feira (20) pela segunda vez nesta semana, rodeado de homens armados, para conclamar a população e obter a atenção da imprensa local para disseminar suas ameaças.

O líder da coalizão de gangues G9, Jimmy 'Barbecue' Cherizier, vestindo camisa verde-oliva, lidera marcha em Porto Príncipe
O líder da coalizão de gangues G9, Jimmy 'Barbecue' Cherizier, vestindo camisa verde-oliva, lidera marcha em Porto Príncipe - Ralph Tedy/Reuters

Barbecue voltou a convocar um movimento armado para derrubar o governo interino do primeiro-ministro Ariel Henry, na liderança do país há dois anos, desde que o presidente Jovenel Moïse foi assassinado em Porto Príncipe por mercenários em julho de 2021.

Ele também vem acrescentando a seu discurso outras duas promessas. Primeiro, de que apoiará com armas a construção de um canal de desvio das águas do rio Massacre (ou Dajabón) que o país divide com a República Dominicana, projeto no centro de um imbróglio regional.

Segundo, Barbecue afirmou em conversa com a Associated Press nesta semana que os homens sob seu comando lutarão contra qualquer força multinacional que "cometa abusos" contra seu povo. Ele se refere aos debates no Conselho de Segurança da ONU, que, em algumas semanas, pode aprovar o envio de uma força multinacional para apoiar a Polícia Nacional Haitiana no combate à violência armada.

O líder da coalizão G9 mencionou dois episódios ocorridos durante a presença da Minustah, a Missão da ONU que, com protagonismo do Brasil, esteve no país caribenho de 2004 a 2017: os casos de abuso sexual contra mulheres haitianas e a introdução da cólera no país, que matou cerca de 10 mil pessoas.

"Lutaremos contra eles até o nosso último suspiro. Essa será uma luta do povo haitiano para salvar a nossa dignidade e o nosso país."

Em um impulso à tentativa de Barbecue de travestir-se como um defensor da soberania haitiana, a ida às ruas do líder nesta quarta coincide com a data em que o país celebra o Dia de Dessalines, em referência ao 265º aniversário de Jean Jacques Dessalines, figura que declarou a independência do Haiti em relação à França em 1804. A data é feriado nacional.

"O movimento das gangues, agora coordenadas, dá a impressão de que elas buscam se apresentar como defensoras do Estado e da população haitiana", afirma o brasileiro Ricardo Seitenfus, ex-representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no país.

Com os problemas de abastecimento gerados pelo fechamento das fronteiras, o G9 prometeu nesta semana que irá permitir o escoamento de produtos do campo para a região metropolitana de Porto Príncipe —hoje bloqueado pelas gangues— para desafogar a crise.

Até a indumentária de Barbecue destoava de suas vestimentas tradicionais. O líder que usualmente aparecia ostentando colares de ouro, coletes a prova de balas, boinas e roupas com estampa militar, nesta quarta-feira usava uma camisa lisa verde-oliva sem adornos.

O Haiti foi um dos temas comuns em vários discursos de líderes na Assembleia-Geral da ONU, que ocorre nesta semana em Nova York. O americano Joe Biden instou o Conselho de Segurança a aprovar a missão multinacional a ser enviada para o país. O presidente Lula (PT), por sua vez, fez breve menção à "persistência da crise humanitária".

O líder mais enfático foi o presidente da República Dominicana, Luis Abinader. No púlpito da ONU, o dominicano atribuiu a Henry a escalada da crise. O governo do premiê é disfuncional e hoje não conta com nenhum membro eleito em suas fileiras —a última eleição no Haiti ocorreu em 2016, e não há previsão de um futuro pleito.

Abinader voltou a criticar a construção do canal no rio Massacre. Assim como já havia dito, afirmou que se trata de uma "manobra de controle da água por uma pequena elite econômica e política haitiana para lucrar com sua venda para pequenos produtores locais".

Haitianos trabalham na construção do canal do rio Massacre em Ouanaminthe
Haitianos trabalham na construção do canal do rio Massacre em Ouanaminthe - Octavio Jon - 15.set.23/Reuters

Os envolvidos no projeto afirmam que o desvio se justifica para suprir a necessidade de agricultores locais após um longo período de seca. O governo dominicano, por sua vez, alega não ter sido comunicado sobre a retomada da construção do canal —paralisada desde a morte de Moïse— e sobre seus potenciais impactos sociais e ambientais.

Santo Domingo afirma ter realizado pesquisas que demonstram que o desvio colocaria dezenas de famílias em risco de falta de abastecimento de água e que, no caso de eventos extremos —a ilha é palco frequente de terremotos— os impactos também poderiam ser agravados.

Ainda nesta quarta, o Haiti e o Quênia —país africano que se ofereceu para liderar a missão multinacional avaliada no Conselho de Segurança— estabeleceram relações diplomáticas e combinaram o envio de embaixadores, em mais uma demonstração de apoio do governo de Henry à missão de apoio externa.

O Haiti vive hoje a mais grave crise humanitária das Américas. Desde o início deste ano, ao menos 5.162 pessoas foram vítimas de episódios relacionados às gangues, que ganham protagonismo à medida que há um vácuo de poder com as instituições enfraquecidas. Destas, 2.907 morreram, segundo números do escritório da ONU no país.

Recente relatório do governo haitiano com organizações das Nações Unidas mostrou que 4,35 milhões de haitianos —ou 44% da população local— enfrentam insegurança alimentar aguda.

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