Descrição de chapéu violência

Haiti deve ter nova missão multinacional para combater violência armada

ONU vê Brasil como peça-chave na negociação no Conselho de Segurança, mas governo Lula não pretende enviar forças

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São Paulo

Mais de dez pessoas morrem a cada dia, em média, no Haiti, como consequência direta da violência ligada às gangues armadas. Estupros se tornaram uma forma corriqueira de ameaça, e a fome, realidade de metade da população local, avança a galope.

A expectativa de içar o país do cenário de caos humanitário, político, econômico e securitário está agora no Conselho de Segurança, a mais alta instância da ONU, da qual o Brasil é membro rotativo e exercerá a presidência em outubro. Espera-se que, até lá, o grupo vote resolução para criar uma força multinacional de apoio à polícia haitiana.

Moradores carregam em moto homem ferido após ação de gangues em Carrefour Feuilles, na capital do Haiti, Porto Príncipe
Moradores carregam em moto homem ferido após ação de gangues em Carrefour Feuilles, na capital do Haiti, Porto Príncipe - Ralph Tedy Erol - 15.ago.23/Reuters

Para a ONU, o Brasil tem papel-chave nas negociações, diz María Isabel Salvador, a representante do secretário-geral da organização, António Guterres, no Haiti. A equatoriana esteve em Brasília na primeira semana de setembro e se refere ao Brasil —em especial sob o governo Lula— como um "irmão mais velho" na América Latina.

Mas, para além da liderança regional, o interesse está nos laços de Brasília com os outros membros do Brics. O ruído para a aprovação de uma força multinacional no Conselho de Segurança, afinal, parte de Rússia e China, membros permanentes e, portanto, com poder de veto. "Sugeri que o governo Lula poderia nos ajudar a reduzir a resistência russa e chinesa, e ouvi que veriam o que era possível fazer."

Do lado russo, pesa a tensão com o Ocidente devido à guerra em curso na Ucrânia. Do chinês, o fato de o Haiti ser um dos 14 países que reconhecem Taiwan, uma província rebelde na ótica de Pequim, como autônoma. Pessoas envolvidas no assunto ponderam que Rússia e China poderiam se abster ou, então, aprovar o texto por consenso, mas com ressalvas, para não desagradar a parceiros latino-americanos.

Mesmo entre os membros do Conselho de Segurança favoráveis à proposta —e o Brasil pende para esse lado— há mais dúvidas do que certezas sobre o texto patrocinado pelos Estados Unidos com apoio do Equador. O governo Lula já expressou que não pretende enviar tropas ou ter protagonismo em uma nova missão no Haiti.

Interlocutores do Itamaraty dizem que ainda há pouca clareza sobre o conteúdo e que o Brasil poderia contribuir de maneira pontual, com envio de oficiais com experiência no Haiti, como os que participaram da Minustah, a Missão da ONU que de 2004 a 2017 esteve no país.

Há também disposição para cooperação técnica, em especial na área da saúde —algo que já existe, mas hoje está travado devido à quase impossibilidade de mobilidade na capital, Porto Príncipe, que tem cerca de 80% do território controlado pelas gangues urbanas locais.

Até pouco tempo, a principal incógnita para o plano de uma missão multinacional de apoio técnico e de treinamento à polícia nacional haitiana estava em quem lideraria a força. Até que o Quênia, país do leste da África, ofereceu-se para tomar a dianteira e enviar mil homens. Nações do Caribe também ofereceram pequenos contingentes, mas o volume ainda é inexpressivo, em torno de 1.450 soldados.

María Isabel Salvador, da ONU, estima que no mínimo 2.000 homens seriam necessários —e que um cenário minimamente confortável contaria com 4.000. Mais do que isso, faria diferença na legitimidade da ação a presença de nacionais da América Latina. Os países da região, no entanto, parecem pouco propensos a isso.

Além de Brasília, a enviada de Guterres esteve em Santiago e na Cidade do México. No Chile, ouviu que é inviável abrir mão mesmo que de uma pequena fração de suas forças —os "carabineros"— dada a crescente sensação de insegurança na capital, aquilo que hoje configura um dos principais desafios do governo de Gabriel Boric.

O drama haitiano é sentido em menor ou maior escala nos países das Américas, destino de uma onda de migrantes. Mais de 45 mil haitianos foram flagrados tentando cruzar a fronteira dos EUA de forma ilegal no primeiro semestre deste ano. Eles também são a terceira nacionalidade que mais cruza o estreito de Darién, a chamada "selva da morte" que é a única rota terrestre da América do Sul aos EUA.

O premiê do Haiti, Ariel Henry, manifesta explicitamente ser favorável à missão e pede que ela seja enviada o mais rápido possível. Mas Henry, na liderança do país desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse em 2021, goza de apoio quase nulo e é chefe de um governo disfuncional, onde não há nem um membro sequer eleito pelo voto popular.

"É preciso institucionalizar o Estado haitiano", hoje à beira da falência, diz a representante da ONU, segundo a qual isso só será possível quando a crise de segurança for mitigada. Eleições estão praticamente fora do radar, mesmo que o último pleito tenha sido em 2016 e que a ONU pressione pelo estabelecimento de um Conselho Eleitoral.

Hoje, o país nem sequer sabe com exatidão quantas pessoas estão aptas a votar, devido a um problema no sistema de registros. A nação tem cerca de 11 milhões de habitantes.

A despeito dos clamores de Henry, há também oposição doméstica a uma missão externa. O Haiti tem hoje mais de 200 partidos políticos —em comparação, o Brasil, com quase 20 vezes a população haitiana, tem 30 siglas registradas.

Uma das coalizões opositoras com maior capacidade de projeção é o Grupo de Montana, que diz defender "soluções haitianas fora das exigências da comunidade internacional". María Isabel Salvador afirma que grupos como esse estão "bloqueando o diálogo político" e "demonstram pouca vontade real de ir a eleições gerais".

Enquanto isso, a população local, em especial os moradores de Porto Príncipe, vê a falência da proteção do Estado. Do início de janeiro à primeira quinzena de setembro, 5.162 pessoas foram, de alguma forma, vítimas da violência atrelada às gangues locais —número compilado pelo Binuh, o Escritório Integrado da ONU no Haiti, que engloba moradores, membros das próprias gangues e policiais.

Entre aqueles que foram assassinados (2.907), ao menos 383 foram linchados. Com a ausência do Estado, um movimento de justiceiros autodenominado "bwa kalé" ("erradicar", em crioulo haitiano) foi às ruas. Membros de gangues foram mortos apedrejados, mutilados e queimados vivos nas ruas enquanto a polícia nacional "testemunhava passivamente as cenas", segundo um informe do Binuh.

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