G20 evita condenar Rússia diretamente por Guerra da Ucrânia em comunicado final

Brasil foi um dos principais articuladores de trecho sobre conflito no documento, que só saiu após negociações árduas

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Nova Déli

Com mediação de Brasil, Índia, África do Sul e Indonésia, o G20 enfim conseguiu entrar em acordo em relação à sua declaração final, divulgada neste sábado (9). O texto, que condena a invasão da Ucrânia, mas não culpa diretamente a Rússia pela ação, poupa esta edição da cúpula de ser a primeira sem um documento do tipo —o que, segundo analistas, colocaria em xeque a viabilidade do grupo, único foro do tipo a reunir países ricos e pobres.

Joe Biden, Narendra Modi e Luiz Inácio Lula da Silva, líderes dos EUA, Índia e Brasil, respectivamente, apertam as mãos uns dos outros no lançamento da Aliança Global de Biocombustíveis, na cúpula do G20, em Nova Déli, na Índia - Evelyn Hockstein/Reuters

O conflito no Leste Europeu era o maior ponto de discordância entre os 19 países que compõem o bloco ao lado da União Europeia. Estados Unidos e UE, apoiados por outros membros do G7, exigiam que a declaração final não só incluísse menções à "agressão da Rússia contra a Ucrânia", como também demandasse "a retirada total" das tropas russas do território ucraniano e classificasse de "inadmissível" o "uso ou ameaça de uso de armas nucleares".

Mas os russos —representados pelo chanceler Serguei Lavrov, uma vez que Vladimir Putin não viajou a Nova Déli— recusavam-se a assinar um comunicado que incluísse uma passagem com esse tom.

Foi uma negociação árdua. Até a sexta-feira (8), às 23h, diplomatas não tinham chegado a um consenso. Foi só após intensa pressão de países em desenvolvimento que os integrantes do G7 acabaram concordando com a linguagem mais amena.

No sábado, bateram o martelo. O comunicado fala, assim, em "cessar a destruição militar e outros ataques a infraestrutura relevante", e afirmam serem bem-vindas "todas as iniciativas relevantes e construtivas para apoiar uma paz justa, abrangente e durável na Ucrânia".

Segundo negociadores, a proposta do texto vencedor é condenar a violação territorial, tal qual previsto pela Carta da ONU, mas "sem humilhar" a Rússia. O bloco dos países ricos desejava, ao contrário, uma declaração com uma condenação enérgica acompanhada de uma nota de rodapé dizendo que Rússia e China não concordavam com o texto, condições às quais ambos os países se opunham. Pequim, aliás, também não enviou seu chefe de Estado, Xi Jinping, ao evento —quem representa o gigante asiático nas negociações é o premiê Li Qiang.

O resultado obtido representa uma vitória para a Índia, que arriscava se tornar o país-sede da primeira cúpula do G20 sem um documento final de consenso. Os EUA, que apostam no país mais populoso do mundo como um contraponto à China e acabam de receber seu primeiro-ministro, Narendra Modi, na Casa Branca, foram instrumentais para convencer os europeus.

Também o governo brasileiro celebrou o consenso. Sem uma declaração conjunta, ele herdaria a presidência de um G20 esvaziado e disfuncional, e o país encara seu ano na presidência do grupo como o ponto alto da reentrada do país no cenário global. Um membro da delegação brasileira comparou a eliminação da menção à Rússia à remoção do "bode da sala".

Segundo uma fonte do governo brasileiro, não interessa para os EUA e para os países europeus um enfraquecimento do G20, ainda mais com a atual expansão do Brics liderada pela China. Negociadores dizem ainda ver no recuo do G7 um reflexo do enfraquecimento da posição do presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, cuja contraofensiva tem decepcionado, e da fadiga dos americanos e europeus com a extensão do conflito e a dimensão dos gastos com armamentos.

Os ucranianos, aliás, criticaram o texto por não mencionar a Rússia, afirmando que a declaração conjunta não era "nada do que se orgulhar". Os europeus até tentaram levar Zelenski para a cúpula, mas a Índia vetou a ideia —no encontro do ano passado, na Indonésia, o ucraniano falou por 20 minutos.

Lula também já teria expressado incômodo com a extensão dos discursos do líder ucraniano, afirmando na cúpula do G7, mais cedo este ano, que ele não deveria falar mais que os chefes de Estado que de fato integravam o grupo. Europeus ainda tentaram emplacar a presença de Zelenski na reunião entre a UE e a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), e na reunião da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) recentemente, sem sucesso.

Outro entrave solucionado foi o pleito americano para sediar a reunião do G20 em 2026, depois da cúpula da África do Sul. Pequim havia expressado oposição à ideia, e tanto o gigante asiático quanto Moscou levantaram a questão das sanções –certos diplomatas e autoridades de ambas as nações estão impossibilitados de entrar em solo americano. O assessor de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, entrou em contato com autoridades chinesas para aparar as arestas.

O Brasil ainda conseguiu incluir no comunicado do G20 uma crítica à legislação europeia contra o desmatamento, com apoio da Indonésia, outra potência florestal, e às exigências ambientais que a UE quer incluir em seu acordo comercial com o Mercosul. O documento ressalta a necessidade de as políticas ambientais serem consistentes com as regras da OMC (Organização Mundial do Comércio), que proíbem medidas discriminatórias.

A lei europeia, que entrou em vigor em junho, prevê sanções contra países que não comprovarem que suas empresas exportadoras de óleo de palma, soja, café, cacau, carne e outros não estão ligadas a desmatamento ocorrido após 31 de dezembro de 2020.

Mesmo assim, o comunicado teve de reduzir suas ambições no combate ao aquecimento global, por pressão da Arábia Saudita. Esta resistiu ao estabelecimento de uma data para a transição energética e de redução das emissões, apesar de os EUA desejarem o contrário.

Enquanto isso, a reunião bilateral que Lula teria com o líder saudita, Mohammed bin Salman, no sábado, foi desmarcada, segundo o Planalto em razão de um atraso na agenda da monarquia. É possível que ela ainda aconteça no domingo (10). Caso se mantenha, porém, o desencontro pode ajudar a evitar um potencial desconforto para o petista —MBS, como o príncipe é conhecido, é acusado de mandar esquartejar o jornalista de seu país Jamal Khashoggi.

Além de divulgar a declaração final do grupo, Modi ainda anunciou neste sábado a entrada da União Africana como novo membro permanente do G20. O órgão continental de 55 Estados-membros terá o mesmo estatuto que a UE, até agora o outro bloco regional participante do bloco. A designação anterior da União Africana era "organização internacional convidada".

"É uma honra receber a União Africana como membro permanente da Família do G20. Isto fortalecerá o G20 e também a voz do Sul Global", afirmou uma mensagem na conta oficial de Modi na plataforma X, o ex-Twitter. A mudança havia sido proposta pelo próprio premiê indiano em junho.

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