Países do G20 não chegam a acordo sobre texto final a horas do início da cúpula

Divergências com Rússia sobre menção à Guerra da Ucrânia em comunicado final põem viabilidade do grupo em xeque

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Nova Déli

A poucas horas do início da reunião de cúpula do G20, marcado para a manhã deste sábado (9), negociadores em Nova Déli ainda não tinham conseguido redigir um comunicado em acordo sobre o encontro. Caso não cheguem a um consenso, será a primeira vez na história do grupo que isso acontece, pondo em xeque a viabilidade do bloco que reúne as 19 maiores economias do mundo e a União Europeia.

O Brasil, ao lado de Índia e África do Sul, tentava até o último minuto costurar um texto alternativo sobre a Guerra da Ucrânia que fosse aceitável tanto para a Rússia quanto para os Estados Unidos e a UE –e, assim, poupar o governo indiano da possível frustração de sediar a primeira reunião do G20 que termina sem consenso.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante chegada em Nova Déli, na Índia, para participação na cúpula do G20
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante chegada em Nova Déli, na Índia, para participação na cúpula do G20 - Ricardo Stuckert/Presidência da República

Segundo negociadores ouvidos pela Folha, o conflito no Leste Europeu é o único ponto de desacordo entre os países. EUA e UE, apoiados por outros membros do G7, exigem que os documentos incluam menções à "agressão da Rússia contra a Ucrânia", demandam "a retirada total" das tropas russas do território ucraniano e classificam de "inadmissível" o "uso ou ameaça de uso de armas nucleares".

Mas os russos —representados pelo chanceler Serguei Lavrov, uma vez que Vladimir Putin não estará no encontro presencialmente— recusam-se a assinar um comunicado que inclua trechos nesse tom.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pousou em Déli às 21h04 desta sexta-feira (8), acompanhado da primeira-dama, Janja, e do assessor especial da Presidência para relações internacionais, Celso Amorim. Seguiram direto para o hotel Taj Palace, onde se hospeda a delegação brasileira —a comitiva, pequena, inclui ainda o chanceler Mauro Vieira.

mulher vestindo roupas típicas indianas pinta testa de mulher branca de cabelos loiros com símbolo do terceiro olho
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), observa a primeira-dama, Janja, em cerimônia de boas-vindas em Nova Déli, na Índia - Ricardo Stuckert/Presidência da República

No sábado, Lula terá reuniões bilaterais com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman. Lula pode ter desconfortos em ambos os encontros –enquanto uma foto com o líder saudita, acusado de mandar esquartejar o jornalista de seu país Jamal Khashoggi, tem potencial para ser alvo de críticas, Erdogan pode pressioná-lo a se pronunciar a respeito da situação dos armênios em Nagorno-Karabakh. A Armênia acusa o Azerbaijão de promover um genocídio ao bloquear o contato do enclave com o mundo exterior; a Turquia apoia os azeris.

No fim da tarde, antes do jantar de honra da cúpula, Lula participa do lançamento da Aliança Global de Biocombustíveis, criada para estimular a produção e o consumo do etanol no mundo. No total, 19 países participam da iniciativa, cujo evento em Nova Déli contará ainda com a presença de Joe Biden, presidente dos EUA, e Narendra Modi, primeiro-ministro indiano.

Evandro Gussi, presidente da União da Indústria da Cana-de-Açúcar e Bioenergia (UNICA), também presente na capital indiana, diz que, ao unir mais países em torno do etanol, a iniciativa traz novas oportunidades de desenvolvimento.

No jantar, Lula e os outros chefes de Estado e de governo vão experimentar pratos típicos da culinária do país anfitrião desta cúpula do G20 e especialidades feitas com milheto, também conhecido como milho painço. A Índia é a maior produtora mundial da variedade, considerada mais adaptável às mudanças climáticas por crescer em locais de clima semiárido e depender de menos irrigação.

Na manhã de domingo (10), Lula e os outros chefes de Estado e de governo depositam flores no Raj Ghat, memorial que homenageia o ícone pacifista Mahatma Gandhi. O petista participa então da última sessão da cúpula e, na sequência, reúne-se bilateralmente com o presidente da França, Emmanuel Macron.

O encerramento terá uma cerimônia de transmissão simbólica da presidência do G20 da Índia para o Brasil, que assume oficialmente o comando do grupo em 1º de dezembro. Como antecipado pela Folha, Lula pretende convocar líderes mundiais reunidos no evento para uma força-tarefa global de combate à fome. No discurso, assim, deve pedir que os países-membros do bloco estabeleçam metas para combater a insegurança alimentar, que hoje afeta 780 milhões de pessoas.

Ainda no domingo, Lula concederá uma entrevista à imprensa e gravará o programa "Conversa com o Presidente", que tem possibilidade de ser veiculado ao vivo.

Além de marcada pela falta de consenso, a cúpula do G20 este ano ainda tem duas ausências notáveis: do dirigente chinês, Xi Jinping, e do presidente russo, Vladimir Putin. A Guerra da Ucrânia e as tensões entre China e Índia contaminaram todas as reuniões do foro multilateral.

No ano passado, a Rússia havia concordado, a contragosto, com a inclusão de menções à "agressão russa contra a Ucrânia" na declaração conjunta da cúpula na Indonésia —mas depois recuou. Pequim, em mais uma manifestação de apoio a Moscou, afirma que o G20 é um foro essencialmente para tratar de economia, não de paz e segurança.

Muitos países em desenvolvimento, o Brasil inclusive, concordam com a visão chinesa. O chanceler russo, Serguei Lavrov, disse à Reuters que seu país bloqueará qualquer declaração conjunta que não reflita as visões russas sobre o conflito.

Os sherpas, como são apelidados os principais negociadores de eventos multilaterais como a cúpula do G20, ficaram dias isolados em um hotel em uma cidade a duas horas de Déli para tentar chegar a um consenso até agora inexistente.

Além das tensões com os russos, as reuniões foram palco de vários embates entre os representantes chineses e os indianos. O clima entre os dois países, que são vizinhos, voltou a se acirrar em 2020, quando conflitos na fronteira no vale do Galwan, em Ladakh, causaram a morte de 20 soldados indianos. Eles ainda competem pelo controle do estado indiano de Arunachal Pradesh e da área de Aksai Chin —briga que ganhou um novo capítulo na semana passada, depois que Pequim divulgou um mapa de seu território que inclui diversas áreas em disputa com outros países asiáticos.

O regime chinês anunciou no início da semana que Xi seria representado na cúpula pelo premiê Li Qiang, mas não explicou o motivo. Xi participou de todas as cúpulas do G20 desde 2013, quando assumiu o leme da China. Em 2021, a participação foi virtual, devido à Covid-19. A ausência na cúpula em Nova Déli foi vista como um tratamento esnobe dado aos anfitriões indianos.

Indagado sobre a ausência da China e potenciais impactos, o sherpa indiano, Amitabh Kant, minimizou o problema. "A China é um ator multilateral engajado em discussões multilaterais, isso é muito diferente das questões bilaterais [entre China e Índia]", disse. Em relação aos obstáculos para obter um comunicado conjunto, Kant disse que a declaração "estava quase pronta".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.