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Guerra da Ucrânia Coreia do Norte

Coreia do Norte, 75, busca seu lugar na Guerra Fria 2.0

Ampliação do conflito entre China e EUA abriu janela para regime stalinista de Kim Jong-un

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São Paulo

A Coreia do Norte, um dos regimes mais obscuros e fechados regimes do mundo, chega neste sábado (9) aos 75 anos de olho em um lugar no mundo da Guerra Fria 2.0, o grande embate geopolítico do século 21 que se desenrola entre Estados Unidos e China.

A ditadura de Kim Jong-un vive um dos pontos mais baixos em sua relação com a Coreia do Sul desde o armistício que, há 70 anos, consolidou a divisão da península em que os países estão na altura do paralelo 38.

Kim Jong-un e Vladimir Putin durante encontro em 2019 na cidade russa de Vladivostok, próxima à fronteira com a Coreia do Norte
Kim Jong-un e Vladimir Putin durante encontro em 2019 na cidade russa de Vladivostok, próxima à fronteira com a Coreia do Norte - Alexander Zemlianinchenko - 25.abr.2019/Reuters

A porta de saída do isolamento parece estar na mesma Moscou que, como capital da União Soviética, estabeleceu inicialmente aquela fronteira em conjunto com os Estados Unidos após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, em 1945.

A aproximação entre Kim e Vladimir Putin, que sempre foi um aliado um pouco distante de Pyongyang, virou o centro das atenções em entrevistas na Casa Branca, nas quais o sujeito oculto é a China, próxima de ambos os líderes.

O ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, durante cerimônia de lançamento de novo submarino tático de ataque nuclear - KCNA - 8.set.23/via Reuters

A provável ida neste mês de Kim para Vladivostok, a fim de encontrar-se com Putin após ter estendido o tapete vermelho ao ministro da Defesa russo, Serguei Choigu, na festa dos 70 anos do armistício em julho, deverá coroar esta nova etapa. Na pauta, presumivelmente, estará o envio de munição para obuses e armas antitanque norte-coreanas para emprego na Guerra da Ucrânia.

Até aqui, apenas outro país, o Irã, ajuda oficialmente o esforço russo, com o fornecimento de drones suicidas Shahed-136. Não por acaso, em 2002 Teerã e Pyongyang foram colocadas ao lado da então hostil Bagdá no folclórico "eixo do mal" do presidente americano George W. Bush.

Hoje, o governo de Joe Biden tem em Putin seu vilão predileto, embora o veja como auxiliar do real rival estratégico, o chinês Xi Jinping. Mas a Coreia do Norte, por aberrante que sua mistura de dinastia familiar e stalinismo em pleno 2023 soe, pode ter um papel no balanço da nova Guerra Fria.

Isso porque, além de comandar o quarto maior contingente militar do mundo, Kim tem ao menos 30 ogivas nucleares e uma grande escolha de mísseis para empregá-las —pode até atingir os EUA, embora não se saiba se com uma bomba atômica.

Ao aproximar-se da radicalizada esfera militar russa, o ditador dá um passo inequívoco. O fracasso do namoro com os EUA sob Donald Trump e a pandemia levaram Pyongyang a um isolamento ainda maior, rompido com a volta de seus ameaçadores testes de mísseis.

Isso gerou uma reação em toda a vizinhança. Os EUA, em vez de contemporizar como fizeram na gestão Trump ou nos anos 1990, só para ver o pai de Kim explodir sua primeira bomba atômica, dobraram a aposta militar.

Estimularam o Japão a abandonar o pacifismo do seu pós-guerra e deram tratamento privilegiado ao belicoso presidente sul-coreano, Yoon Suk-yeol, que passou a ter consigo compartilhados segredos de armas nucleares americanas para o caso de uma guerra.

Um submarino, com quase três vezes mais ogivas atômicas do que Pyongyang, frequentou águas sul-coreanas, e os três países experimentam um regime inédito de manobras militares conjuntas. De seu lado, Kim segue disparando foguetes, simulando ataques nucleares e fazendo ameaças.

Além da provável associação em relação a munições, que Moscou pode retribuir com tecnologia balística e nuclear, Choigu confirmou que estão planejados exercícios militares com os norte-coreanos, talvez com os chineses junto. Tudo isso configura um perigoso balé bélico na península coreana, de lado a lado.

O que resta insondável é o destino da Juche, a política norte-coreana de autossuficiência que o fundador da nação, Kim Il-sung (1912-1994), implantou logo que o país foi criado sob os auspícios da União Soviética e da China.

Kim avô era um guerrilheiro coreano que mal falava a língua de seu país, tendo passado 26 anos exilado, educado na China enquanto lutava contra os ocupantes japoneses da Manchúria —o domínio colonial japonês na Coreia, iniciado em 1910, é um capítulo brutal e mal resolvido entre os países ora aliados.

Em 1942, ele foi incorporado ao Exército Vermelho como major e, em 1945, desembarcado como um títere do ditador Josef Stálin (1878-1953) na Coreia do Norte. Com o fim da guerra, em 15 de agosto daquele ano, os EUA apoiaram a criação daquilo que viraria a Coreia do Sul, sendo então respondidos pelos comunistas que dominavam a porção norte da península em 9 de setembro.

Criada a República Democrática Popular da Coreia, o Norte, foi uma questão de tempo para que a guerra estourasse. O conflito violento teve idas e vindas a partir de 1950, mas três anos e talvez três milhões de mortos depois as fronteiras voltaram mais ou menos ao ponto em que tudo começara. E estão assim até hoje.

A Juche preconizava independência econômica, política e militar, e, ao longo da Guerra Fria, Kim Il-sung pendeu ora mais para Pequim, ora para Moscou, a depender de conveniências —quando Stálin teve seus crimes denunciados, ele ficou com o chinês Mao Tsé-tung (1893-1976) na resistência ao revisionismo em Moscou, e promoveu de quebra os expurgos que queria, consolidando seu poder em 1956.

Do ponto de vista econômico, o arranjo deu mais ou menos certo até os anos 1970, quando o Sul começou a transformar-se na potência tecnológica que é hoje. Esposando um capitalismo baseado em campeões nacionais e sob ditaduras próprias, Seul só veria a democracia em 1987, já estabelecida como ator importante.

Pyongyang ficou para trás. Morto Kim, em 1994, o poder familiar passou ao filho, Kim Jong-il (1941-2011), que presidiu um período de expansão militar, com o desenvolvimento da bomba atômica, mas também sobre fome e pobreza extrema. Do lado do Sul, conviveu com uma aproximação que agora é defunta.

Seu caçula Kim Jong-un assumiu em 2011 com ares joviais, tendo o que se crê serem 39 anos hoje. Após promover um expurgo, parece ter estabelecido mão firme sobre o regime. Seus três encontros com Trump sugeriam um novo tempo de abertura, mas tudo provou-se inócuo, até porque a bomba, cuja remoção é o objetivo dos EUA, é a apólice de seguro da família no poder.

Resta agora saber como se dará a integração de Pyongyang ao lado sino-russo da disputa mundial, dado seu histórico de busca por posições autônomas.

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