Descrição de chapéu Mercosul União Europeia

Acordo UE-Mercosul travou por 'efeito Bolsonaro' e agora pode nem ser aprovado

Ratificação do tratado entrou em compasso de espera por questões ambientais, comerciais e políticas; entenda impasse

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O acordo comercial entre União Europeia e Mercosul vive um impasse. Com as negociações concluídas desde 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), o texto ainda não foi ratificado pelos dois blocos —e agora corre o risco de não ser aprovado.

Negociada oficialmente desde 1999, a resolução esbarra em novas condicionantes ambientais pedidas pelos europeus, bem como divergências do governo brasileiro sobre prejuízos à reindustrialização do país.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já prometeu concluir o acordo ainda em 2023, mas disse que os atuais termos são impossíveis de serem aceitos, defendendo uma renegociação do texto.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebe o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, no Palácio do Planalto - Gabriela Biló/Folhapress - Folhapress

De acordo com eurodeputados envolvidos no processo, a UE optou por congelar o trâmite após a assinatura em 2019 devido a um "efeito Bolsonaro". Segundo parlamentares, seria politicamente inviável aprovar um acordo comercial envolvendo o Brasil num momento em que a imagem ambiental do país estava manchada internacionalmente.

Como justificar, por exemplo, a conclusão de um acordo para comprar mais mercadorias do Brasil enquanto a Amazônia estava pegando fogo, questionou um membro do comitê responsável por analisar os tratados comerciais do bloco.

A chegada de Lula à Presidência reabre a possibilidade de definição —e a UE quer aproveitar esta janela antes das eleições para o parlamento europeu, que acontecem em 2024.

O acordo é tido como importante para o bloco se desvencilhar de uma dependência comercial com a China. Além disso, a conclusão do tratado comercial com o Mercosul pode dar um respiro geopolítico e econômico para uma UE cada vez mais isolada entre a dominância dos EUA e China.

Juntos, Mercosul e União Europeia respondem por cerca de 25% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial, abrangendo uma população de 750 milhões de pessoas.

No entanto, por se tratar de um acordo que ficou na mesa por duas décadas, há a percepção de que aspectos hoje importantes não estão devidamente abordados no texto.

Do lado europeu, a principal queixa é sobre a parte ambiental. O bloco quer estabelecer requisitos sustentáveis para a entrada de produtos do Mercosul, principalmente no que se refere a desmatamento da Amazônia, violação de direitos humanos e uso de agrotóxicos.

O acordo tem padrões de sustentabilidade que não são vinculativos, por isso os blocos estão negociando um termo adicional, chamado de "side letter", que torna obrigatório os compromissos ambientais.

Esse é um dos principais impasses para a ratificação do acordo. Enquanto a Europa quer garantir que a exportação de commodities com problemas ambientais seja vista como uma violação, membros do governo brasileiro consideram as condições muito rígidas.

O eurodeputado francês, Yannik Jadot, dos Verdes, diz que o Brasil hoje sinaliza um comprometimento com o meio-ambiente, o que é positivo para o acordo. Mas pondera que não é possível se contentar com "comprometimentos políticos", dado que o tratado vai durar décadas e passar por outros governantes.

Tornar os termos sustentáveis vinculantes seria, portanto, uma garantia contra eventuais governos com agenda anti-ambiental.

A França é um dos principais opositores do acordo nos termos atuais. O país defende, entre outras coisas, a inclusão do que seriam "cláusulas espelho", isto é, os produtos só podem entrar na UE se seguirem as mesmas condições que o bloco impõe internamente.

Este é um ponto especificamente delicado para a agricultura brasileira. Não só pela questão do desmatamento mas, sobretudo, pelos agrotóxicos.

Durante o governo Bolsonaro, centenas de pesticidas foram autorizados. Muitos deles não são permitidos em outros países.

O que alguns eurodeputados argumentam é que não faz sentido —e o acordo deve incluir isso— comprar mercadorias do Brasil que foram produzidas com substâncias totalmente proibidas na Europa.

Mas a rigidez da regra ambiental não é uma unanimidade entre os eurodeputados. Há aqueles que acham desejável que a UE flexibilize para concluir o acordo logo.

Em entrevista à Folha, José Manuel Fernandes disse que ambos os blocos devem ter bom senso, já que estão buscando os mesmos objetivos.

Europa quer ou não fechar o acordo?

Esta tampouco é a única divergência entre os europeus. A UE está longe de ter uma posição homogênea sobre os termos do acordo.

O setor agrícola —que tem muita força política— teme que mais produtos sul-americanos entrem no mercado local. Além de interesses protecionistas, há a alegação de que os padrões de produção são menos rígidos e, portanto, as mercadorias custam menos.

Fernandes, contudo, diz que algumas alas políticas usam de pretextos ambientais para criar obstáculos. O interesse por trás seria inviabilizar a conclusão do tratado com o Mercosul.

Segundo eurodeputados envolvidos na discussão, o tema não é popular entre eleitores, ambientalistas e o agro. O principal apoio viria do setor industrial, que deseja ter acesso a novos mercados.

É possível reabrir o acordo?

Outra divergência é em relação à possibilidade de reabrir o acordo. Na avaliação de membros do governo brasileiro, a side letter já configura uma reabertura do tratado –ainda que não de maneira formal.

Já os parlamentares europeus discordam. Para Jadot, dos Verdes, não se trata nem de uma side letter, mas de um termo que explica como o acordo deve ser interpretado.

Apesar disso, o eurodeputado é favorável à reabertura da negociação para se chegar a um entendimento mais atualizado do acordo, que ele chama de "dinossauro".

Segundo ele, a renegociação seria importante inclusive para o Brasil, já que o acordo não faz menção à reindustrialização dos países do Mercosul.

"Se os alemães estão tão ansiosos com este acordo é porque eles precisam exportar, porque eles têm problema com a Rússia, eles têm problema com a China. Então eles querem ter novos mercados. Se eles querem novos mercados na América Latina, não é para o Brasil produzir carros, é para os alemães exportarem carros para o Brasil", diz.

É possível concluir o acordo este ano?

Tanto os líderes europeus quanto os brasileiros concordam que há uma janela de oportunidade para que o tratado seja fechado em 2023.

O eurodeputado português diz que é difícil, mas possível e desejável. Já o parlamentar francês aposta que a Comissão Europeia vai finalizar o acordo neste ano, mas com pouca ambição sustentável.

A conclusão oficial, porém, ele considera impossível de acontecer tão cedo. "Não será ratificado neste ano, com certeza", diz. "Uma vez que o acordo está assinado, existe o escrutínio legal. Há que se checar cada palavra em termos legais", acrescenta.

Mesmo assim, Jadot acha que o acordo não será ratificado no parlamento. Embora não seja necessário unanimidade, é pouco provável que o texto passe sem o consentimento da França, a segunda maior economia do bloco.

"Eu acho que a Comissão vai tentar fazer um compromisso com o Mercosul, mas não será suficiente para o Conselho e para o Parlamento, por causa dos aspectos sustentáveis. É a minha aposta"

Ele cita que, em 2020, a UE concluiu um acordo com a China sobre investimentos, que não foi aprovado pelo Parlamento.

Com AFP

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.