Crise humanitária faz Biden adotar cautela em apoio a Israel

Ajuda incondicional oferecida no início da guerra dá lugar a tom crítico ante resposta de Tel Aviv aos ataques do Hamas

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Michael D.Shear David E.Sanger Edward Wong
The New York Times

Três dias depois de terroristas do Hamas terem massacrado mais de 1.400 pessoas, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ofereceu apoio ao primeiro-ministro Binyamin Netanyahu em resposta à promessa do líder de Israel de "vingar este dia negro" e transformar os esconderijos do Hamas em "ruínas" pelo ar e pelo solo.

"Eu disse a ele que se os Estados Unidos passassem pelo que Israel está passando, nossa resposta seria rápida, decisiva e avassaladora", lembrou Biden, durante uma ligação entre os dois líderes em 10 de outubro.

Mas a mensagem do presidente, na qual ele se juntou enfaticamente ao luto que varria Israel, mudou drasticamente nas últimas três semanas. Embora continue a declarar apoio inquestionável a Israel, Biden e autoridades militares e diplomáticas se tornaram mais críticos em relação à resposta de Israel aos ataques terroristas e à crise humanitária em curso.

O presidente Joe Biden desembarca do Air Force One na Base Conjunta Andrews, em Maryland, nos EUA
O presidente Joe Biden desembarca do Air Force One na Base Conjunta Andrews, em Maryland, nos EUA - Tom Brenner-30.out.23/The New York Times

O presidente e seus principais assessores ainda se agarram à esperança de que a nova guerra entre Israel e o Hamas possa eventualmente dar lugar à retomada das negociações para a normalização das relações entre Israel e a Arábia Saudita, e até mesmo oferecer alguma alavancagem para um retorno ao diálogo sobre uma solução de dois Estados, em que Israel e a Palestina existam lado a lado. Binyamin Netanyahu tem resistido a tal movimento há muito tempo.

"Embora possa parecer um pouco mais ilusório agora, ainda acreditamos que seja a coisa certa a fazer pela região, pelo mundo, certamente pelo povo palestino", disse John F. Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, na segunda-feira (30).

Mas, a curto prazo, autoridades americanas têm se tornado mais incisivas ao lembrar aos israelenses que, mesmo que terroristas do Hamas estejam se misturando deliberadamente com civis, as operações devem ser adaptadas para evitar perdas não militares. Na semana passada, o secretário de Estado, Antony Blinken, disse na ONU que "pausas humanitárias devem ser consideradas", uma medida que Israel rejeitou.

"Embora Israel tenha o direito —na verdade, a obrigação— de se defender, a forma como o faz é importante", disse Blinken, acrescentando que "isso significa que alimentos, água, medicamentos e outras assistências humanitárias essenciais devem poder chegar a Gaza e às pessoas que precisam delas".

No domingo (29), apenas um dia depois de líderes militares israelenses afirmarem que terroristas do Hamas estavam usando um hospital em Gaza como centro de comando, Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional do presidente, foi mais direto. Sullivan disse no programa "Face the Nation", da CBS, que o uso de civis como escudos humanos pelo Hamas "cria um fardo adicional para as Forças de Defesa de Israel".

Ele declarou: "Isso é algo sobre o qual conversamos diariamente com os israelenses." Sullivan então observou que hospitais não são alvos militares legítimos, assim como Israel estava alertando que outro grande hospital em Gaza precisava ser esvaziado antes da próxima rodada de bombardeios.

Autoridades disseram que a mudança de tom e substância foi resultado da crise humanitária em Gaza. Segundo o Ministério da Saúde local, mais de 8.500 pessoas foram mortas, o que tem gerado indignação nos Estados Unidos e ao redor do mundo.

A mudança ocorreu em meio a denúncias globais das ações de Israel e a uma explosão de protestos nos Estados Unidos. A polícia do campus da Universidade Cornell, em Ithaca, no estado de Nova York, fazia a guarda no Centro de Vida Judaica da universidade no domingo, após postagens online circularam com ameaças contra estudantes judeus, de acordo com um comunicado da presidente de Cornell, Martha Pollack.

Nos primeiros dias após os ataques do Hamas, Biden recebeu elogios por seu apoio incondicional a Israel, descrevendo a onda de assassinatos como "um ato de pura maldade" e prometendo garantir que os israelenses "tenham o que precisam para responder" ao pior ataque aos judeus desde o Holocausto. Biden enviou ao Congresso um pedido de US$ 14,5 bilhões em ajuda militar para Israel.

Mas à medida que Israel começou a lançar bombardeios aéreos em Gaza em preparação para uma invasão terrestre que começou no fim de semana, Biden adotou um padrão de enviar mensagens cada vez mais críticas aos israelenses— primeiro em particular e depois em público.

Os EUA mantiveram uma lista rotativa de altos funcionários diante de Netanyahu —cada um tendo o cuidado para não dizer aos israelenses o que fazer, mas fazendo uma série de perguntas destinadas a comunicar a preocupação da administração. Como você lida com os túneis em Gaza? Se você tiver sucesso, quem administra Gaza? Você já pensou na reação da opinião pública caso o número de vítimas civis aumente, ou se a crise em Gaza pode atrair o Hezbollah e outras milícias?

Blinken visitou Israel três vezes. O secretário de Defesa, Lloyd Austin, reuniu-se com seus homólogos lá, juntamente com Michael Kurilla, comandante do Comando Central, e depois com Rishi Sunak, primeiro-ministro do Reino Unido. Uma autoridade europeia disse que as visitas não foram coordenadas com os Estados Unidos, mas que todos tinham a mesma ideia de que seria difícil iniciar uma invasão terrestre enquanto altos funcionários estavam na sala de espera.

Em 15 de outubro, oito dias após os ataques, Blinken teve uma conversa franca com Biden depois de visitar o Cairo, onde se encontrou com o líder egípcio. A viagem de Blinken pelo Oriente Médio, na qual o Egito foi a última parada entre Israel e seis nações árabes, deu à Casa Branca a primeira visão clara da crescente oposição no mundo árabe.

Poucas nações árabes emitiram declarações de apoio a Israel no momento dos ataques do Hamas em 7 de outubro. Mas os funcionários do governo inicialmente acreditavam que poderiam obter mais apoio para o Estado judeu desses governos e de outros países ao redor do mundo, dada a quantidade de atrocidades que o Hamas cometeu contra os israelenses.

Na época, Blinken informava diariamente Biden sobre suas suas viagens, transmitindo ao presidente as profundas ansiedades que estava ouvindo. Segundo autoridades dos EUA, Biden disse a Blinken durante uma ligação em 15 de outubro para retornar a Israel e tentar persuadir os líderes de lá a permitir a entrada de ajuda humanitária em Gaza, mesmo que os líderes israelenses parecessem prontos para iniciar uma invasão terrestre.

Tornou-se evidente para os funcionários dos EUA que Israel acreditava que as baixas civis em massa eram um preço aceitável na campanha militar. Em conversas privadas com seus homólogos dos EUA, autoridades israelenses mencionaram como os Estados Unidos e outras potências aliadas recorreram a bombardeios devastadores na Alemanha e no Japão durante a Segunda Guerra Mundial —incluindo o lançamento das duas ogivas atômicas em Hiroshima e Nagasaki— na tentativa de derrotar esses países.

Publicamente, a linguagem de Biden começou a mudar.

Em 14 de outubro, em um evento na Filadélfia, Biden enfatizou que "a esmagadora maioria dos palestinos não tinha nada a ver com o Hamas e os ataques terríveis do Hamas, e eles também estão sofrendo com o resultado".

Quatro dias depois, durante uma breve visita a Israel, Biden pressionou Netanyahu e seu gabinete de guerra para parar de bombardear a área da passagem de Rafah entre Gaza e Egito, a fim de permitir a entrada de ajuda. Eventualmente, Biden anunciou que 20 veículos de ajuda, uma pequena fração do que era necessário, teriam a entrada permitida.

"Eu fui muito direto com os israelenses", disse Biden a repórteres a bordo do Air Force One, enquanto viajavam de volta de Israel. "Israel foi gravemente vitimizado. Mas, você sabe, a verdade é que se eles têm a oportunidade de aliviar o sofrimento das pessoas que não têm para onde ir, é isso que eles devem fazer."

Ele disse que, se Israel não seguir esse conselho, "eles serão responsabilizados de maneiras que podem ser injustas", mas acrescentou: "Se você tem a oportunidade de aliviar a dor, você deve fazê-lo, ponto final. Se você não o fizer, perderá credibilidade em todo o mundo".

Após a viagem de Biden, as ressalvas do governo dos EUA quanto a uma invasão terrestre apenas aumentaram. Líderes israelenses não parecem ter um objetivo final para a invasão, disseram autoridades dos EUA. Netanyahu e seu gabinete de guerra não tinham planos sobre o que fazer com Gaza uma vez que as tropas israelenses entrassem e começassem a ocupar, pelo menos temporariamente, parte ou toda a região.

No fim do mês, o secretário de Defesa, Lloyd Austin, aconselhou autoridades israelenses a adiar a invasão terrestre. Ele argumentou que os americanos e os israelenses precisavam de mais tempo para negociar reféns, obter mais ajuda humanitária em Gaza, planejar melhor a guerra e fortalecer as defesas em torno das tropas americanas na região, que estavam sendo cada vez mais atacadas por milícias apoiadas pelo Irã no Iraque e na Síria.

De certa forma, os americanos estavam empurrando uma porta aberta. Eles haviam detectado sinais de que Netanyahu estava relutante em prosseguir com uma invasão terrestre.

Os funcionários dos EUA também perceberam que praticamente não há maneira de conquistar mais apoio diplomático para Israel. Os países ao redor do mundo, especialmente nas nações em desenvolvimento, estão se afastando à medida que o número de mortos palestinos aumenta. Até mesmo os aliados europeus estão divididos em relação à guerra de Israel. Para autoridades dos EUA, o que conseguiram fazer com a Ucrânia —construir uma coalizão de apoio internacional— será impossível de fazer com Israel.

Muitos governos em todo o mundo expressaram a necessidade de um cessar-fogo imediato. Um número crescente de legisladores americanos, incluindo aqueles que, em declarações, enfatizaram suas origens judaico-americanas, dizem que Israel deve se comprometer com "pausas humanitárias" para lidar com a crise em Gaza.

Para Biden, a caminhada na corda bamba continua. No domingo, Sullivan indicou que os Estados Unidos continuariam pressionando Israel, publicamente e em particular, para que exerça contenção.

"Essas conversas acontecem várias vezes ao dia. Elas acontecem entre o presidente e o primeiro-ministro", disse ele. "Aqui, sentado em público", acrescentou Sullivan, "direi apenas que os Estados Unidos deixarão seus princípios e proposições absolutamente claros, incluindo a santidade da vida humana inocente. Então, continuaremos a fornecer nosso conselho a Israel em particular."

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