Direita radical europeia vê no governo Netanyahu 'ar de família', diz especialista

António Costa Pinto diz que bloco ideológico, dividido em torno da Ucrânia, une-se por Israel

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São Paulo

Se a invasão da Ucrânia pela Rússia dividiu a direita radical da Europa, a guerra entre Israel e Hamas une os partidos e governos desse espectro ideológico, afirma o cientista político António Costa Pinto, da Universidade de Lisboa.

"A direita radical europeia reconhece no governo de [Binyamin] Netanyahu [primeiro-ministro de Israel] um ‘ar de família’. A dimensão antissemita do passado desvaneceu-se", afirma o acadêmico à Folha.

Premiê de Israel, Binyamin Netanyahu, em reunião de gabinete no fim de setembro, em Jerusalém
O premiê de Israel, Binyamin Netanyahu, em reunião de gabinete no fim de setembro, em Jerusalém - Abir Sultan - 27.set.23/AFP

Na invasão da Ucrânia, não houve a mesma unidade. O cientista político diz que a direita radical até simpatiza com Vladimir Putin, mas a pressão anti-Rússia dos Estados Unidos e da Otan (a aliança militar ocidental) fez alguns governos recuarem, como mostra a Itália.

Agora não há nada parecido. Os EUA apoiam Israel, e o terrorismo do Hamas ajuda Netanyahu a criar dissidências nas posições equilibradas da União Europeia diante do conflito.

"Se, por hipótese, a reação do fundamentalismo islâmico extremista passar por atentados terroristas, estes tenderão a fortalecer a mensagem da direita radical populista", diz Costa Pinto, especialista no tema.

Na semana passada, o cientista político português fez a conferência de abertura do 47º encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), quando falou sobre a atual onda populista na Europa.

"Se há cinco ou seis anos nós nos interrogávamos se se trata de uma dinâmica global, [hoje] não há dúvida nenhuma de que estamos numa onda populista clara", disse ele na ocasião.

Costa Pinto se refere a populismo como um projeto político cujo discurso vai contra as elites de um país e se associa a uma retórica nacionalista que valoriza o povo; entre suas características estão o autoritarismo e o conservadorismo no campo dos valores.

"O primeiro ponto que eu gostava de salientar, que é um ponto muito interessante e que nem sempre tem sido salientado pela literatura, é que esta vaga não tem um polo ou polos de difusão importantes", afirmou na conferência.

Ou seja, não há nenhum país em posto semelhante ao que, na Guerra Fria, ocuparam a União Soviética e os EUA para o comunismo e o capitalismo, respectivamente.

De acordo com Costa Pinto, a Rússia governada por Putin é "o protótipo de um regime autoritário que cumpre os pressupostos da direita radical populista, ao contrário do que se pode eventualmente pensar", mas não chega a ser polo de difusão ideológica, nem mesmo centro de gravidade.

A Hungria de Viktor Orbán tampouco cumpre essa função, segundo o acadêmico, embora emane certa autoridade no bloco pelo fato de ser um país com um regime autoritário consolidado e membro da União Europeia.

Daí não decorre, porém, que não existam traços comuns, transversais a todos os governos ou partidos do tipo. Ele cita alguns: discurso anticorrupção, discurso antipolítica, a ideia de que imigrantes não europeus representam uma ameaça, temas de identidade nacional.

Nos dois últimos casos, segundo o cientista político, os partidos de direita radical populista miram setores da sociedade que podem ser considerados "perdedores da globalização", isto é, que de algum modo sentem efeitos negativos desse processo, sobretudo no mercado de trabalho.

"E repare-se que, no caso europeu, não é apenas a globalização no sentido clássico; também é a globalização no sentido da construção do mercado único europeu."

Como consequência, o multiculturalismo simbolizado pela ONU (Organização das Nações Unidas) também entra na linha de fogo dessa direita, que procura rejeitar noções do direito internacional para sobrevalorizar a soberania nacional.

Ele também sustentou que movimentos de esquerda associados ao campo socialista perderam a ligação eleitoral com setores populares e viram a direita radical preencher esse espaço. "O partido populista de direita radical na Suécia tem um eleitorado popular ex-trabalhista, para dar um exemplo."

Outro aspecto para o qual Costa Pinto chama a atenção é a dimensão da mobilização identitária: "É estrutural e transversal, e muito associada a ela está a dinâmica de polarização. Sem polarização, a direita radical não cresce eleitoralmente."

A guerra Israel-Hamas, tendo como pano de fundo o longo conflito entre israelenses e palestinos, sem dúvida reforça a polarização, mas não faltam temas identitários para a direita radical populista mobilizar eleitores.

O Reino Unido votou o brexit com base em retóricas dessa natureza; afirma-se em toda a Europa que os imigrantes de outros continentes ameaçam valores ocidentais e nacionais, para nada dizer dos empregos; ideais religiosos conservadores entram em confronto com direitos de gênero, e daí por diante.

Em sua conferência, Costa Pinto ainda destacou a mudança de relação com o passado provocada pela direita radical.

"Por políticas do passado, queremos dizer o processo pela qual as elites e as sociedades democráticas legislam, revisitam, reveem os temas do passado autoritário e, muitas vezes, alteram o seu significado e trazem para a arena política." Um exemplo não europeu que ele citou foram as discussões fomentadas por Jair Bolsonaro (PL) sobre o legado da ditadura militar no Brasil.

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