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Banir populistas como Trump é mais perigoso do que deixá-los disputar eleições, diz filósofo

David Runciman afirma que é arriscado insistir num único modelo de fazer política

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São Paulo

E daí que Donald Trump se negou a aceitar o resultado das eleições? Eleições, aliás, que nem são a coisa mais importante do mundo, não equivalem a democracia e nem funcionam tão bem assim –razões pelas quais deveríamos pensar em maneiras diferentes de fazer política.

David Runciman adora provocações desse tipo. Mas não são provocações gratuitas. São parte de uma filosofia instigante que desafia consensos e lugares-comuns.

Por exemplo, enquanto diversos especialistas apontam uma onda de populismo que ameaça a democracia, Runciman vê apenas eventos aleatórios; enquanto muitos temem os efeitos das fake news, Runciman afirma que a democracia nunca se baseou apenas na verdade.

Retrato do professor David Runciman
O professor David Runciman - Mark Turner

Não que ele considere ambos os fenômenos inofensivos. Para Runciman, contudo, tentar proteger a democracia desses riscos revela um apego perigoso a um modelo de organização do Estado.

"Assumir que temos de barrar os populistas para continuar fazendo política do mesmo jeito é mais perigoso do que a possibilidade de populistas ganharem eleições. Porque, em algum momento, esse jeito de fazer política não funcionará mais", afirma em entrevista à Folha.

Professor de política da Universidade de Cambridge (Inglaterra), Runciman acaba de lançar no Brasil seu mais novo livro, "Confrontando o Leviatã – Uma História do Pensamento Político Moderno" (ed. Todavia), baseado em uma série de seu popular podcast Talking Politics.

Em seu novo livro, o sr. apresenta um impasse da democracia: haveria uma sensação geral de que algo não vai bem, mas ninguém tem coragem de mudar aspectos do sistema por medo de ele se desintegrar. É possível sair do impasse?
A ideia de Estado é mais profunda do que a democracia. A democracia é mais recente e, de certa forma, mais superficial. E não é o único caminho possível. Se não por outro motivo, o Estado chinês do século 21 nos mostrou isso. Mas, ainda assim, os que vivemos em uma democracia não conseguimos deixar de pensar nela como única opção.

É preciso ter coragem para imaginar algo diferente, mas nós perdemos a coragem. Estamos muito assustados mesmo para pequenas coisas, como mudar a forma de fazer eleições. Veja os Estados Unidos. É o Estado mais poderoso que o mundo já conheceu, uma história de sucesso, mas ninguém diria que está funcionando bem hoje em dia. Ainda assim, ninguém pensa que se deve mudar a forma como se faz a política.

Fala-se em diferentes pessoas nos cargos de comando, mas não se fala em mudar o sistema. Dizem que seria muito perigoso. É uma armadilha psicológica: como esse jeito de fazer política foi bem-sucedido nas últimas décadas, já não sabemos como agir quando ele funciona mal.

Isso explica a ascensão de políticos populistas que se declaram "outsiders"? Para citar alguns, vimos Donald Trump nos EUA, Jair Bolsonaro no Brasil, Beppe Grillo na Itália e, agora Javier Milei na Argentina.
Ele se apresentam como "outsiders" de maneiras diferentes. Assim como [Volodimir] Zelenski [na Ucrânia] e Nigel Farage [da campanha do brexit no Reino Unido]. Mas uma coisa que eles têm em comum é que nenhum deles é realmente um "outsider". Todos os populistas que chegaram ao poder tiveram sucesso quando se tornaram políticos convencionais, não quando tentaram governar como "outsiders".

Se Trump ganhar de novo, especialmente se ele estiver a caminho da prisão, talvez seja diferente, porque ele precisará tomar atitudes radicais.

Em 2018, o sr. disse em entrevista à Folha que o impeachment de Trump não seria uma boa ideia. E agora, qual é sua opinião sobre eventuais punições?
Trump só não ganhou em 2020 por causa da Covid. Ou seja, ele não foi reeleito devido a um acaso. Então, honestamente, não tenho ideia do que vai acontecer se ele for condenado, e talvez preso, enquanto estiver disputando a Presidência. Mas não acho que enviá-lo para a prisão possa impedi-lo de se tornar presidente. A única forma de derrotar Trump é por meio de uma eleição.

Isso funcionou da última vez. Algumas pessoas dizem: "Mas ele e seus apoiadores não aceitaram o resultado". Bem, mas e daí? Ele perdeu e deixou de ser presidente. Não é que tenha continuado na Casa Branca. Tenho certeza de que Trump violou leis, mas acho que é mais perigoso tentar barrá-lo com a prisão do que aceitar o risco de tentar derrotá-lo na eleição.

Na sua visão, populistas não oferecem risco à democracia liberal?
Não há dúvida de que há um risco. Mas as pessoas falam como se houvesse uma onda de populismo, enquanto eu acho que é algo aleatório, com altos e baixos em diferentes lugares e a possibilidade de que, em alguns países, surja uma versão do populismo que produza danos de longo prazo.

O problema é que existe essa sensação de que o populismo é uma ameaça à democracia liberal e que, portanto, nós devemos protegê-la dos populistas, enviando-os para a prisão, impedindo que eles disputem eleições, dizendo para todo mundo que eles são pessoas más.

Esse é o perigo. Assumir que temos de barrar os populistas para continuar fazendo política do mesmo jeito é mais perigoso do que a possibilidade de populistas ganharem eleições. Porque, em algum momento, esse jeito de fazer política não funcionará mais. Nada funciona para sempre.

Mas existe uma alternativa, que é mudar o jeito que fazemos política.

Como?
Poderíamos ter mais pessoas comuns em posições de poder; poderíamos ter sorteio; crianças deveriam poder votar; podemos desmembrar os partidos; podemos deixar de pensar que tudo é eleição. Mas nunca fazemos nada disso.

Eu sempre me impressiono com a relutância das pessoas. Poderíamos fazer a democracia muito mais democrática. As eleições têm se mostrado desgastadas e corrompidas em diversos lugares, mas ainda pensamos que elas são a coisa mais importante do mundo. E, se alguém como eu diz que talvez as eleições não sejam a coisa mais importante, o que as pessoas escutam é alguém se dizendo contra a democracia. Não, eu não sou contra a democracia. Eu só acho que identificar a democracia com as eleições é uma loucura.

No final do livro, o sr. observa que, apesar de todos os avanços tecnológicos nos últimos 30 anos, a arquitetura institucional da democracia ainda é a mesma. O que poderia ter mudado?
Os cidadãos comuns têm hoje mais poder e controle sobre certos aspectos de suas vidas. Nós usamos a tecnologia para nos comunicar com mais liberdade; acessamos informação de maneiras diferentes, podemos escolher entre várias opções. Podemos nos comunicar com pessoas que compartilham nossas visões, nossos interesses. Muito mais pessoas trabalham por si mesmas; elas criam meios de ganhar dinheiro –ainda que não muito.

Na política, por sua vez, ainda é tudo analógico e hierárquico. Nós damos poder aos políticos e deixamos que eles tomem decisões por nós; a cada intervalo de tempo, dizemos se estamos felizes com eles e, enquanto isso, reclamamos. Mas nada muda de fato.

E quanto às fake news, que tantos especialistas apontam como um problema para a democracia? Não parece ser o foco de sua atenção. Por quê?
Não gosto muito da expressão "fake news", como se há 50 anos as notícias fossem verdadeiras e agora elas são falsas. O que existe hoje é muito mais notícias, muito mais escolhas, muito mais versões. Mas a versão que circulava 50 anos atrás não era necessariamente verdadeira.

Então não gosto da ideia de que exista um problema novo, como se a democracia antes fosse baseada na verdade. A democracia nunca foi baseada na verdade. A pessoa que ganhava uma eleição não era a pessoa que falava mais verdades.

Claro que o volume, a velocidade, o alcance, tudo isso é novo. Mas eu não acho que isso seja capturado pela expressão "fake news". E voltamos a meu ponto: acho perigoso pensar que temos de proteger a democracia dessa oferta variada de fontes de notícias. Isso não vai funcionar.

O que temos de fazer é criar maneiras de a democracia lidar com o fato de que as pessoas agora esperam ser mais ouvidas, ter mais escolhas, mais diversidade de informações.

Então não é que eu não ache que seja um problema. Mas eu acho que há muitas coisas que hoje em dia são apresentadas como um par ou/ou. Ou seja, ou as notícias são verdadeiras ou são falsas, ou a democracia é uma democracia ou ela se degenerou em um tipo de populismo ou fascismo. Quando, na verdade, tudo está em um espectro, um contínuo.

O fim do seu livro faz pensar que o sr. espera que surja um novo modelo de Estado. É isso mesmo?
Espero que não pensemos que os próximos 50 anos precisam seguir o padrão político dos últimos 50 anos. Mas isso não quer dizer que eu desisti da democracia, que sou fatalista, pessimista, ou que estou a favor de tirania ou ditadura. Dizer que uma mudança radical é possível não pode ser visto sempre como sinal de desistência.


RAIO-X | David Runciman, 56

Professor de política da Universidade de Cambridge e editor convidado da London Review of Books. Apresentou o podcast Talking Politics e lançou, no Brasil, os livros "Como a Democracia Chega ao Fim" e "Confrontando o Leviatã – Uma História do Pensamento Político Moderno", ambos pela editora Todavia.

Confrontando o Leviatã - Uma História do Pensamento Político Moderno

  • Preço R$ 89,90 (320 págs.); R$ 72,90 (ebook)
  • Autoria David Runciman
  • Editora Todavia
  • Tradução Christian Schwartz
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