Descrição de chapéu Venezuela América Latina

Regime dá sua palavra, mas depois não cumpre, diz principal líder opositora da Venezuela

Favorita nas primárias deste domingo (22), María Corina Machado desconfia de acordo firmado entre Maduro e parte do antichavismo

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Buenos Aires

O acordo assinado entre o ditador Nicolás Maduro e parte da oposição venezuelana por eleições livres em 2024 não mudou a desconfiança da principal figura do antichavismo no momento. María Corina Machado, 56, diz à Folha que já foram abertos 15 processos de diálogo anteriores, e nenhum vingou. "O regime dá a sua palavra, se compromete e depois não cumpre", afirma. Ela é a favorita para ser escolhida como nome da oposição nas primárias que serão realizadas neste domingo (22).

Uma das dúvidas que Corina levanta é se Maduro vai de fato suspender a inabilitação eleitoral de nomes da oposição, inclusive ela própria, que foi impedida de concorrer a cargos por 15 anos devido a supostas "irregularidades administrativas" quando era deputada, de 2011 a 2014. A líder opositora crê na reversão da medida "porque vai haver ruído da comunidade internacional".

maria corína fala e gesticula com mão esquerda. é branca, tem cabelo castanho escuro, usa camisa azul-claro. atrás dela, sem foco, há um mapa
A ex-deputada e líder da oposição na Venezuela, María Corina Machado, 56 - Gaby Oraa - 19.jan.2023/Reuters

Corina tem sido acossada pelo regime há bastante tempo. O chavista linha-dura Diosdado Cabello, então presidente da Assembleia Nacional Venezuelana, cassou seu mandato em 2014. Ela não pode sair do país nem usar aviões para trajetos internos. Se tem atos políticos nos rincões mais longínquos do país, vai de carro ou moto. Há anos não vê os filhos. Por causa da perseguição à mãe, eles foram viver nos EUA.

Como a sra. vê o acordo entre o regime de Maduro e parte da oposição para haver eleições livres em 2024?
Nós não participamos dessas negociações, e desconheço o alcance preciso deste acordo. Com muita razão, nós, venezuelanos, temos uma profunda desconfiança em relação ao que o regime tem feito. Já há 15 processos de diálogos anteriores nos quais o regime dá a sua palavra, se compromete e depois não cumpre. De modo que a nossa posição neste momento é que o importante não é a assinatura, mas o cumprimento estrito, não só do que diz o acordo, mas do que estabelece a Constituição, para dar garantia aos venezuelanos de que teremos eleições limpas e livres em benefício do nosso povo.

O que ficou claro, e assim o estabeleceram os funcionários do governo dos Estados Unidos, é que as licenças [suspensões de sanções] que foram autorizadas serão mantidas se —e só se— o regime cumprir no período acordado, antes do fim de novembro, com a libertação dos presos políticos e a resolução das inabilitações inconstitucionais. Isso foi reiterado [...] até mesmo no próprio comunicado que emitiu o secretário de Estado dos EUA. Para mim, o importante é que nossa força está no poder da gente. Estou focada nisso e sei que as primárias deste domingo serão um dia histórico. Este é o verdadeiro acordo que selaremos.


Será possível a oposição escolher um candidato único para enfrentar Maduro nas eleições de 2024?
Sim, essa é a intenção que os líderes dos partidos de oposição manifestaram. Além disso, tudo o que está acontecendo é inédito. Poucas pessoas acreditavam que era possível, até poucos meses atrás, que os venezuelanos voltassem às ruas. E eles têm voltado em massa.

Houve muitos obstáculos colocados pelo CNE [Conselho Nacional Eleitoral], pelo regime, que não queriam o voto de quem está no exílio, que proibiu que o voto fosse nos centros tradicionais de votação. E fomos derrubando todas essas barreiras.

Em janeiro, a Venezuela era um país decepcionado e frustrado. Com a ideia dessa primária para chegar a um candidato único, o país despertou. Estou nessa luta pela liberdade e pela democracia há anos, mas nunca havia sentido algo assim.

O chavismo dividiu a Venezuela entre ricos e pobres, brancos e negros, direita e esquerda, trabalhou constantemente para fragmentar e criar barreiras. Só que essas barreiras caíram, e o país está se unindo. Qualquer venezuelano hoje te diz que quer que seus familiares voltem [7 milhões de pessoas deixaram o país desde o início do chavismo].

A sra. tem recebido apoio de ex-chavistas?
Posso assegurar que hoje, na base da nossa força, há muitíssimos chavistas. Nos últimos anos, eu fazia eventos para 300 ou 400 pessoas, hoje são mais de 3.000, e muitos são chavistas. Eles nos contam que estão cansados e desesperados.

Como acha que virou a opinião daqueles que a consideravam radical?
Foi o chavismo quem me vendeu como uma pessoa radical e de ultradireita. Foi parte da campanha para me desacreditar. E isso foi ruindo, porque, ao final, as pessoas perceberam que a mudança, a redemocratização do país, se converteu numa luta existencial para mim. Hoje vejo esse reconhecimento. Nos meus atos, as pessoas me abraçam, oram, cantam. Há algo de catártico. Nunca havia sentido algo tão poderoso.

Ainda que ganhe as primárias, a sra. está inabilitada. Como vai lidar com isso na eleição de 2024?
Esse não é um obstáculo que me tira o sono. Creio que foi um grave erro do regime, que gerou repúdio dentro e fora, e que o resultado das primárias irá deixar exposto. Ele pode ser derrubado porque é inconstitucional e porque vai haver ruído da comunidade internacional.

Se vencer agora e em 2024, derrotando Maduro, quais seriam os principais pontos de sua plataforma?
Há que se entender que estamos vivendo uma crise humanitária brutal, e isso vem em primeiro lugar. Hoje, as aposentadorias são de US$ 4 ao mês, o salário dos professores é de US$ 1 diário, as crianças vão apenas duas vezes por semana à escola, e mais de 80% dos hospitais do país não têm água nem insumos. Portanto, a prioridade tem de ser atender a essa crise humanitária.

O segundo ponto tem a ver com a questão econômica. A Venezuela tem a inflação mais alta do mundo. A desvalorização é monumental. Primeiro é preciso conseguir a estabilidade macroeconômica para gerar confiança e começar a fazer com que venham investimentos. Controlar a inflação é prioritário para que o ingresso real dos trabalhadores comece a crescer e para que exista confiança no futuro de nosso país.

O terceiro elemento é converter a Venezuela num hub de energia das Américas. Num momento de crise energética mundial, todos os países do Ocidente precisam de provedores de petróleo e gás. A Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo e a quinta maior reserva de gás. O problema é que, num país onde não há Estado de Direito e não há eletricidade e serviços públicos, ninguém vai investir para que os roubem, para que expropriem suas propriedades, seus ativos. Temos de gerar as condições para que a Venezuela se converta num grande receptor de investimentos em matéria energética.

Vários países se aproximaram do regime de Maduro, chegando a "normalizar" a situação da Venezuela. Líderes como Gustavo Petro, da Colômbia, e Lula, do Brasil. Isso atrapalha a oposição?
A esta altura está claro que a discussão na Venezuela vai muito além do ideológico ou da amizade e das afinidades que possam haver entre os distintos atores.

Maduro se converteu numa figura tóxica. Hoje avança uma investigação no Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade cometidos por ele. Relatórios de órgãos de direitos humanos mostram claramente que na Venezuela há presos políticos, há tortura, há desaparecimentos forçados, há perseguição política sistemática. Eu fui um desses casos de perseguição.

Além disso, cada vez mais se conhecem os vínculos que Maduro tem com o financiamento do terrorismo, como Hizbullah e Hamas. Essas pessoas estão em nosso território.

Então se Lula, Petro, AMLO [presidente mexicano] e outros creem que devem se aproximar de Maduro por conta de ideologia ou afinidade pessoal, logo verão o erro que estão cometendo.

Afinal, está claro que, para o próprio bem desses governos, será melhor que a Venezuela faça uma transição ordenada para a democracia. Só assim vamos deter a imigração e parar de exportar grupos criminosos, como Tren de Aragua, que atua no norte do Brasil com facções locais.

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