Entenda por que Venezuela se transformou em ditadura sob Maduro

País melhorou após grande crise em 2018, mas continua mergulhado em pobreza e desigualdade

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Buenos Aires

Em menos de 20 anos, a Venezuela passou por períodos de esperança, riqueza, declínio e, depois, pela maior crise humanitária de sua história. Agora, vê índices melhorarem, mas segue mergulhada em desigualdade e denúncias de violações de direitos humanos enquanto espera as próximas eleições, previstas para 2024.

Abaixo, entenda a crise e a situação atual da população governada há 25 anos pelo regime iniciado por Hugo Chávez, sendo a última década dominada pelo seu então vice, o hoje ditador Nicolás Maduro.

Nicolás Maduro e Lula durante reunião entre líderes da América do Sul em Brasília - Ueslei Marcelino/Reuters

Crise econômica

A crise econômica na Venezuela começou a dar as caras em 2013, atingiu seu ápice em 2018 e até hoje deixa a grande maioria da população sem acesso a produtos básicos. A principal raiz do problema, de acordo com analistas, está na grande dependência do petróleo.

Chávez assumiu o país em 1998 com altos índices de pobreza e conseguiu revertê-los durante a década de 2000, favorecido pelo preço da commodity no mercado mundial. Mas o valor começou a despencar no final de seu governo, contribuindo para a derrubada das receitas e o início da deterioração do país.

Paulo Velasco, coautor do livro "A Venezuela e o Chavismo em Perspectiva" (Appris, 2022), cita também a péssima gestão pública durante o regime. Além da queda do preço, houve a queda de produção pela falta de investimento na estatal de petróleo PDVSA, a nomeação de militares em cargos administrativos e casos de corrupção.

"O governo se acostumou com a época de vacas gordas e não soube se adequar à realidade", diz Velasco. Com grande parte da economia estatizada, Maduro manteve gastos muito elevados e controlou o câmbio. O bolívar foi derretendo, a inflação, explodindo, e o PIB, encolhendo.

Com a queda abrupta das exportações, reduziram-se as importações num país que não produz a maioria do que consome, o que causou crise de abastecimento de itens como alimentos e remédios. As sanções impostas a partir de 2017, principalmente pelos EUA, agravaram a situação.

Minguaram a reserva de dólares e reduziram ainda mais as importações e as exportações de petróleo, fazendo a Venezuela buscar outros compradores. Em novembro, o presidente americano, Joe Biden, relaxou algumas limitações.

Maduro costuma criticar as sanções e diz que elas mostram que "a economia não é neutra, que o dólar não é neutro, que os bancos internacionais [...] são não neutros", como discursou à rede de TV estatal do país no ano passado. Ele afirma que seu regime trabalha para que a Venezuela produza tudo o que come.


Pobreza e desigualdade

Nesse contexto, o índice de pobreza multidimensional (que não considera apenas a renda, mas as privações da população) cresceu ininterruptamente entre 2014 e 2021, de 39% para 65%. No ano passado, caiu pela primeira vez, para 50%, segundo a última Pesquisa Nacional sobre Condições de Vida do país.

A desigualdade, porém, não para de aumentar, de acordo com o mesmo levantamento: os 10% mais ricos ganham 70 vezes mais do que os 10% mais pobres. Isso faz a Venezuela ser o país mais desigual das Américas em termos de renda, com índice comparado aos de Namíbia, Moçambique e Angola.

O desabastecimento não é mais um problema, e sim o acesso às mercadorias. "Há ampla oferta de bens de todos os tipos, mas o cidadão comum não tem acesso a eles. São para 10% a 15% da população", diz Omar Lugo, jornalista e analista no país, que destaca também os apagões de energia diários.

Algumas medidas do governo de Maduro para atenuar a crise liberalizaram a economia em certa medida e melhoraram a atividade do setor privado. A inflação já está longe do seu pico, em 2018, quando chegou a mais de 100.000% anuais, mas continua entre as piores do mundo, ultrapassando 400% anuais.


Autoritarismo

O autoritarismo começou ainda no governo de Chávez, principalmente depois que ele sofreu uma tentativa de golpe em 2002. Em 2009, o líder fez uma emenda na Constituição para permitir reeleições ilimitadas. Falava em ficar no poder até 2030, enquanto perseguia opositores e minava a liberdade de imprensa.

Mas foi depois que ele morreu, devido a um câncer, em 2013, que seu vice, Maduro, passou a mostrar a face mais autoritária do regime, tentando se manter no poder com uma taxa de popularidade que nunca se aproximou da registrada pelo antecessor e sendo tachado por setores chavistas como "neoliberal".

Em 2017, por exemplo, após perder o controle do Parlamento, o ditador criou uma Assembleia Constituinte com amplos poderes para neutralizar a oposição. O chavismo também domina o Tribunal Supremo de Justiça, instância máxima do Judiciário. Ele se reelegeu em 2018 sob eleições muito questionadas e sem o acompanhamento de observadores internacionais.

A ocorrência de uma série de crimes contra a humanidade também foi denunciada. Em abril, a Corte Penal Internacional divulgou um informe reunindo 1.746 denúncias. Em setembro passado, a ONU já havia publicado relatório com 122 casos desde 2014. Espancamentos, uso de descargas elétricas e asfixia são algumas das práticas relatadas por opositores da ditadura.

"Há censura e autocensura. Não existem meios de imprensa tradicionais e programas de rádio e TV dedicados a informação e opinião. Os meios digitais são os que permanecem de pé no jornalismo independente, mas o acesso à internet é um dos piores do mundo", afirma o jornalista Omar Lugo, editor do site "El Estímulo".


Crise migratória

As crises política e econômica causaram também uma crise migratória sem precedentes, em especial a partir de 2018, para países países da vizinhança. A agência da ONU para refugiados registrou 7,2 milhões de venezuelanos refugiados ou migrantes até março —número próximo ao da Ucrânia, em guerra com a Rússia há mais de um ano.

Isso provocou uma profunda mudança demográfica na Venezuela. Se em 2015 existiam cerca de 31 milhões de habitantes, em 2022 passaram a ser 28 milhões. Além das migrações, cresceram as mortes e caíram os nascimentos, o que causou um encolhimento significativo dos jovens na pirâmide etária.

Agora, a maior onda parece ter passado, e parte dos venezuelanos começa a voltar: pela primeira vez em 20 anos, o saldo de quem entra e quem sai das fronteiras (migração neta) ficou positivo em 2022, segundo dados da Divisão de População da ONU.

"A pandemia interrompeu o fluxo, que não voltou com a força anterior", diz Velasco. "Os venezuelanos com quem conversei querem voltar não por apoiarem Maduro, mas por sentirem falta da família e por estarem desesperançosos. Os que queriam pressionar uma mudança de fora já não acreditam mais que elas vão acontecer."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.