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Todos vimos, todos sabemos: Travar a morte em Gaza é honrar enfim a memória do Holocausto

Há uma nova geração para a mudança; a libertação do trauma que aprisiona a Europa, onde o Holocausto aconteceu, com a cumplicidade de tantos; que a Europa a ouça, porque eles sabem tudo sobre urgência

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Alexandra Lucas Coelho

Jornalista e escritora, ex-correspondente do Público em Jerusalém

1) A Europa está refém da culpa do Holocausto desde a II Guerra Mundial. Mas honrar a memória do Holocausto será travar a mortandade em Gaza agora. E honrá-la enfim, porque essa memória foi traída até chegarmos a isto: 2,3 milhões de pessoas trancadas num gueto, bombardeadas dia e noite, metade das quais deslocadas, sem água, comida, assistência.

E foi traída também no gueto-arquipélago da Cisjordânia, onde quase três milhões de palestinianos enfrentam a violência de colonos cada vez mais radicais. Os hoje 700 mil colonos que Israel foi plantando com betão e alcatrão, bem agarrados ao chão, tanto na Cisjordânia como em Jerusalém Oriental, todos ilegais à luz do que a Europa assinou. E que assim impedem a "Solução Dois Estados", como os líderes mundiais —todos eles— estão cansados de saber.

Homem carrega criança chorando enquanto caminha em frente a um prédio destruído por um ataque aéreo israelense na cidade de Gaza - Mohammed Abed - 7.out.23/AFP

2) O mundo está cansado de saber. Não há guerra mais mediatizada. Nenhum outro lugar está incrustado em tantos humanos, pela fé, pela história, pelo pensamento. Ao mesmo tempo, é como se o mundo de cada vez não soubesse. Há quem fosse criança na Primeira ou na Segunda Intifada, ainda há pouco, agora. Haverá sempre quem esteja a acordar, e quem possa acordar ainda. Como haverá sempre quem não pense.

Não pensar é muito perigoso. No epílogo de Eichmann em Jerusalém —um livro sobre o julgamento do nazi responsável pelo transporte de milhões de judeus para o extermínio—, a judia Hannah Arendt fala do não-pensamento que viabiliza o crime.

Escrevemos muito depois de Auschwitz, apesar do buraco que parecia ter engolido a poesia. Temos ecos de muitas canções, muitos filmes. Depois de Auschwitz houve Hiroxima, e de cada vez nada vimos: nada vimos que nos faça melhores.

A prova é estarmos aqui. É o Estado de Israel —fundado para que nunca mais o Holocausto acontecesse, e à custa de muito combate, incluindo ataques terroristas sionistas— ter erguido um muro em torno de cinco milhões de pessoas, e essas vidas desaparecerem do lado de lá.

Valiam menos que as dos israelitas? Valem menos que a nossa, cada uma, agora? Valem menos porque em Telavive a vida é uma festa de gente branca e bonita onde o Ocidente se imagina melhor? Cinco milhões é metade de Portugal. E metade desses cinco milhões são crianças. Desapareceram da nossa vista, mas perante a nossa vista, no lugar mais televisionado do mundo.

3. Escrevo estas palavras num jornal de um país europeu de maioria cristã. Muitos terão ido lá ou sonham com isso, a Terra Santa, onde Cristo nasceu e morreu crucificado. Os que a visitaram nos últimos anos já viram Belém atrás de um muro. O Santo Sepulcro cercado de soldados. A Via Dolorosa cheia de metralhadoras. Fora os colonos, para cima e para baixo, desafiando esse coração de Jerusalém. Alguns leitores deste texto terão até atravessado o checkpoint para Ramallah, visto a Cisjordânia.

Mas raríssimos puderam entrar em Gaza. A primeira vez que lá entrei, em 2002, auge da Segunda Intifada, já era difícil. Um viajante normal não podia, só sendo jornalista credenciado, membro de ONG ou diplomata/político. E foi ficando pior.

Em 2006, o Hamas ganhou as eleições gerais palestinianas, uma vitória limpa —e não surpreendente, dado o falhanço da Fatah—, mas que a UE decidiu não reconhecer, colando-se aos EUA nisso, contribuindo para alienar e radicalizar o Hamas. Uma oportunidade perdida. Tudo mudou para pior. Isolado, em ruptura com a Autoridade Palestiniana, o Hamas passou a governar Gaza, e ficou ainda mais difícil ir lá.

Tudo isto serviu a colonização israelita.

Entretanto, Israel proibia os seus cidadãos de entrar em qualquer cidade palestiniana. Há muito que os israelitas perderam o contacto civil com o horror do outro lado. Só quando estão dentro de uma farda, com uma arma na mão. Ou quando são colonos, essa espécie de milícia, carne para canhão do apartheid. O que também ajudou a triturar a esquerda e a empatia.

Portanto, muito pouca gente no mundo entrou em Gaza. As novas gerações de Israel não conhecem a Palestina senão como soldados. E foi debaixo de fogo e ocupação, atrás de um muro, entre checkpoints humilhantes, que as novas gerações palestinianas nasceram.

Alguém acha mesmo estranho que se "radicalizem" jovens assim, presos, sem perspectiva, rodeados de morte? Alguém acha que manteria a cabeça no lugar? Que não enlouqueceria? Não pensaria em tudo para se libertar?

Vivi um ínfimo daqueles checkpoints, daqueles massacres, daqueles dias e noites sob bombas em Gaza. No mesmo quarto de crianças que jamais conheceram uma noite sem pesadelos. Sempre senti que o milagre na Palestina, mas sobretudo em Gaza, era a vida apesar de tudo. A hospitalidade, a entreajuda. Toda a gente não ter enlouquecido, apesar de tudo.

Apesar de os pais já terem sido presos, ocupados e mortos, e os avós idem, e tudo a cada dia ser pior. E apesar de o mundo —mesmo sem entrar em Gaza, mesmo com o muro— ver, saber e permitir.

4. E quem vai justificar isso para as novas gerações pelo mundo? Quem lhes explica porque é que a Europa não trava esta matança? Porque é que os pais deles, os avós ficaram tão presos na própria culpa, no seu próprio medo, ou seja, em si mesmos, que não são capazes de honrar os mortos de ontem salvando os vivos de hoje?

A memória do que foi o Holocausto vai da concentração dos judeus em guetos até ao extermínio. Também de meio milhão de ciganos, também de homossexuais e doentes mentais, mas acima de tudo, esmagadoramente, de judeus: um genocídio sem precedentes, sucedendo a perseguições milenares. Incluindo em Portugal. Somos todos herdeiros dessa memória, de uma forma colectiva e contínua que se pode resumir assim: nunca mais.

Nunca mais é o espelho que está diante de cada um agora, e esse espelho diz: ainda sou humano?

5. Desde o ataque do Hamas em 7 de Outubro, os líderes da União Europeia (UE) não tiveram palavras novas para a escuridão inédita em que estamos. A declaração que penosamente articularam dia 15 era tão velha quanto as muitas décadas que estão para trás. Tão oca como centenas de declarações anteriores. Procurei a palavra "ocupação" no texto. Não é um adjectivo nem uma opinião. É Direito Internacional, resoluções da ONU assinadas pelos países da UE e boa parte do mundo. Mas essa palavra não estava lá.

Ao longo de todas estas décadas, a Europa falhou em estar à altura do que ela mesma votou. Fala pelos direitos humanos, a paz e a civilização. Mais, como fundadora e guardiã disso. Mas, quando isso é violado pelo Estado de Israel, os responsáveis da UE não questionam que Israel seja uma democracia, e não forçam a aplicação do que assinaram.

A inacção da Europa é uma acção contra a sua própria palavra.

6. O brutal 7 de Outubro foi o maior trauma que o Estado de Israel já viveu na guerra com os palestinianos. Em cada casa israelita agora há luto, conversas sobre evacuações por barco para Chipre, hipóteses de emigração ou pelo menos um soldado, um reservista, filhos dos amigos. Gente que morrerá numa invasão terrestre de Gaza. E penso também na angústia dos ditos árabes-israelitas, ou seja, palestinianos que vivem no território de Israel. Israel voltou-se para dentro, e o abismo só servirá a extrema-direita, e esse parasita da guerra que é Netanyahu.

Vimos, estamos a ver e veremos imagens que nunca tínhamos visto, ou julgámos não voltar a ver. É uma noite muito escura em várias direcções.

7. Alguns dos leitores deste texto ainda não tinham nascido a primeira vez que fui a Gaza. Eles não entendem que a gente não faça nada. Tal como não entendem que a gente não faça nada quando não há planeta B. E como entender? O que há para entender? É fazer.

Esta é uma geração madura para uma mudança que não aconteceu na minha. Para uma libertação do trauma que aprisiona a Europa onde o Holocausto aconteceu, com a cumplicidade ou inacção de tantos, além dos alemães. Que a Europa ouça esta geração, porque eles sabem tudo sobre urgência. Era ontem, é já.

Falo da Europa porque sou europeia, e precisamos muito que os líderes da Europa ousem contrapor-se às armas que os EUA empunham já, aliando-se ao governo de Netanyahu.

Além do livro de Hannah Arendt —que em 7 de Outubro eu estava a ler na tradução portuguesa, acabei entretanto, e para mim ficou fundido com o que estamos a viver agora—, tenho na mesa Nós, filhos de Eichmann, do também filósofo judeu Günther Anders, que foi marido de Hannah.

Sim, nós, filhos de Eichmann. Maus animais, como escrevi sábado neste jornal. Para quem leu, o meu amigo W. voltou a responder. Amigo de muitos anos em Gaza, e que muito sofreu às mãos do Hamas. Mesmo com dificuldade em caminhar, tentou ir para sul, seguindo a ordem de evacuação de Israel. Apanhou uma explosão no caminho, dezenas de mortos. Voltou para trás. Voltou a fazer uma fractura, ele que nunca recuperou das torturas. Comida não era importante, escreveu-me, mas água sim. Uns vizinhos ajudaram. Alguém sempre ajuda, é o que há, é o que têm. Foi o que sempre vi, em 21 anos de idas a Gaza: têm-se uns aos outros.

Este artigo foi publicado originalmente pelo diário português Público, com sua grafia original

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