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As regras da guerra guerra israel-hamas

Ambulâncias não podem ser atacadas, mesmo que levem membros do Hamas

Direito da guerra exige cálculo macabro, mas espera-se que comandantes militares sejam altamente especializados

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João Paulo Charleaux

Jornalista e autor de “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História”, trabalhou no Comitê Internacional da Cruz Vermelha

O ataque israelense a um comboio de ambulâncias na sexta-feira (3), na Faixa de Gaza, reacendeu discussões sobre a ocorrência de crime de guerra. Os palestinos dizem que o comboio era civil e transportava apenas feridos e doentes. Já os israelenses dizem que as ambulâncias eram usadas pelo Hamas.

Moradores ao redor de uma das ambulâncias do comboio alvo de ataque aéreo na Cidade de Gaza, a mais populosa da faixa homônima
Moradores ao redor de uma das ambulâncias do comboio alvo de ataque aéreo na Cidade de Gaza, a mais populosa da faixa homônima - Momen al-Halabi - 3.nov.23/AFP

O caso só pode ser elucidado com uma investigação independente. E uma sentença definitiva só pode ser dada por um tribunal competente. Mas nada impede que, com base nas versões disponíveis, seja feita uma análise a partir dos parâmetros do direito internacional.

Instalações, veículos e pessoal médico são protegidos por lei nas situações de conflito armado. Essa proteção está contida na primeira Convenção de Genebra —a primeira norma jurídica de valor universal adotada para regular as guerras no mundo. A versão original desse documento é de 1864, mas ele foi ampliado e atualizado após a Segunda Guerra Mundial, em 1949.

A primeira Convenção de Genebra protege os combatentes feridos e enfermos nos campos de batalha, além do pessoal encarregado de prestar socorro. Para tornar clara essa proteção, foi adotado um emblema ao mesmo tempo de fácil confecção e de imediata visualização: uma cruz vermelha sobre fundo branco. Mais tarde, outros símbolos foram admitidos, entre eles o crescente vermelho, que aparece no comboio atacado.

Desde o século 19, portanto, os serviços de saúde são protegidos por lei. Àquela época, o socorro era prestado apenas pelos exércitos que estavam em combate. Depois, entraram em cena os serviços civis de saúde e as agências humanitárias, que podem atender tanto civis quanto combatentes.

Não é um problema legal que ambulâncias e hospitais de Gaza estejam atendendo e transportando combatentes do Hamas. Eles não podem ser alvos por isso. Eles têm esse direito, tanto quanto os combatentes israelenses.

Há, no entanto, uma exceção: se um dos lados da guerra fizer uso dessa proteção para cometer um "ato prejudicial ao inimigo", ela pode ser suspensa. Portar armas leves de uso pessoal como pistolas e fuzis dentro de hospitais e de ambulâncias não é o suficiente para caracterizar um "ato prejudicial ao inimigo", mas usar um hospital para lançar ataques com foguetes ou usar ambulâncias para transportar armas e munições às linhas de frente, sim. Se isso acontecer, a proteção pode ser suspensa.

Na hipótese de que uma ambulância seja usada para cometer um "ato prejudicial ao inimigo", a força contrária pode reagir. Mas deve sempre fazer a distinção entre civis e combatentes. Civis não podem ser atacados nunca. Já os combatentes são alvos legítimos —desde que não sejam os próprios enfermos e doentes recebendo socorro.

Para atacar, o comandante militar terá de se ater a três princípios. O primeiro é o da "distinção", para o qual deve se fazer perguntas como: há formas de atingir os militares sem matar os civis? Posso usar armas e munições mais precisas e com menor poder de destruição neste contexto? Como posso evitar completamente ou minimizar ao máximo as mortes de civis?

O segundo é o princípio da "oportunidade", determinado por questões como: há momento mais propício para efetuar os disparos, considerando o impacto que eu causarei sobre os civis? Eu poderia disparar depois que esses combatentes saíssem das ambulâncias e se afastassem dos civis?

Por fim, o princípio da "proporcionalidade", no qual o comandante deve se questionar: o dano que causarei aos civis justifica o valor militar dos alvos que serão atingidos? Ou eu matarei dezenas de civis apenas para neutralizar um punhado de homens do Hamas que não me ofereciam risco iminente naquele momento?

Tudo isso envolve um cálculo macabro, mas espera-se que comandantes militares de Exércitos regulares, como o de Israel, sejam profissionais altamente especializados no que fazem.

Generais e coronéis são graduados e pós-graduados nas funções que exercem. Além disso, são cercados de conselheiros, assessores e consultores não apenas técnicos e militares, mas também jurídicos e políticos. Quando uma determinada ação viola o direito e é levada a um tribunal militar ou a uma corte internacional, os juízes tratam de avaliar precisamente esses elementos descritos.

Cada força tenta reivindicar para si critérios de excepcionalidade, dizendo que essas normas não se aplicam porque "o outro lado é um grupo terrorista" ou "o outro lado não respeita as regras". São argumentos que não comoveriam um tribunal.

Essas leis são aplicáveis tanto a atores estatais, como Israel, quanto a atores não estatais, como o Hamas. A aplicação não é recíproca –ou seja, mesmo que meu inimigo não as tenha respeitado, eu sigo obrigado a respeitá-las. Por fim, é um direito aplicável indistintamente às guerras consideradas justas ou injustas. As razões que levaram ao conflito não vêm ao caso.

Sempre pode-se argumentar que os tribunais não alcançam certos atores poderosos, mas isso não devia nos impedir de saber a verdade, promover as leis e defender o mínimo de humanidade, mesmo nas situações mais extremas.

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