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Lei de guerra protege jornalistas, mas quase 60 já morreram em Gaza

Direito trata correspondentes ora como possíveis 'prisioneiros de guerra' ora como civis com ampla proteção

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João Paulo Charleaux

Jornalista e autor de “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História”, trabalhou no Comitê Internacional da Cruz Vermelha

Pelo menos 57 profissionais de imprensa foram mortos Gaza desde 7 de outubro. Outros 19 estão presos, e um número ainda maior relatou ameaças, agressões e censura. Os dados, compilados pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ, na sigla em inglês) mostram os riscos aos quais jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas estão expostos na guerra.

Repórteres vão à linha de frente dos combates. Graças a eles, conseguimos saber o que se passa. Mesmo com a multiplicação das câmeras de celular e com as redes sociais, nas quais qualquer um se torna hoje um comunicador, a imprensa continua tendo o papel indispensável de informar, investigar, checar, editar, organizar, contextualizar e publicar muito do que nos chega sobre a situação em terreno.

Jornalistas palestinos em funeral de colega morto em ataque israelense em Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza
Jornalistas palestinos em funeral de colega morto em ataque israelense em Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza - Rizek Abdeljawad - 3.nov.23/Xinhua

Os riscos aos quais esses profissionais se expõem vêm de dois lados: primeiro, os jornalistas não são imunes às bombas, aos tiros e às privações humanitárias que vitimam os civis de forma geral. Além disso, há riscos adicionais ligados à própria função porque, enquanto os civis costumam se proteger e correr na direção contrária do conflito, os repórteres fazem o oposto, avançando na direção da notícia.

O direito internacional tem duas disposições principais para a proteção jurídica desses profissionais. A mais antiga delas está na Terceira Convenção de Genebra, de 1949. O artigo 4º dessa Convenção diz apenas que "correspondentes de guerra" devem, se capturados, ser tratados como "prisioneiros de guerra".

Essa norma só pode ser entendida no contexto da época em que foi adotada. Na Segunda Guerra Mundial, jornalistas eram incorporados e acreditados pelas Forças Armadas dos países em conflito. Recebiam uniformes e tinham patentes militares. Essas operações de comunicação eram um misto de propaganda de guerra com informação de verdade.

O mundo mudou muito desde então e, embora as Forças Armadas ainda tenham em seus quadros profissionais de comunicação, a verdade é que a maioria dos jornalistas presentes hoje num conflito são empregados de empresas jornalísticas ou, o que é mais comum, são autônomos que se lançam ao perigo na esperança de vender seus trabalhos a grandes empresas do setor.

Para esses profissionais, há uma disposição legal mais moderna, no artigo 79 do Protocolo Adicional 1, de 1977. De forma resumida, esse artigo diz que os jornalistas são civis e, como tais, gozam da mais ampla proteção que o direito confere em situações de conflito armado: civis não são alvos legítimos. Logo, não podem ser objeto de ataques diretos nem podem ser capturados, seja por forças estatais ou por grupos armados.

O problema é que os jornalistas costumam frequentar uma zona cinzenta. Para se aproximar da linha de frente, acabam combinando com militares ou combatentes uma espécie de carona que lhes dá acesso privilegiado à notícia. Muitos viajam em veículos militares, dormem em quartéis, barracas e esconderijos, trepam em canhões e outras peças de artilharia ou voam em aeronaves militares.

Colocar-se nessas situações dá aos repórteres vantagens e desvantagens. A principal vantagem é a de aproximar-se o máximo possível de uma operação militar. A desvantagem é andar colado em alguém que é alvo legítimo. Além disso, o repórter "embedded" (literalmente, alguém que divide a cama com os militares) pode se converter num vetor de propaganda, mas essa é uma consideração mais sobre ética jornalística do que sobre o direito da guerra como tal.

Esses riscos já são grandes o bastante quando a associação se dá com uma Força Armada regular, como as chamadas Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês). Quando a associação se dá com um grupo armado organizado, como o Hamas, o perigo é muitas vezes multiplicado.

O profissional de imprensa não pode colocar o regulamento debaixo do braço e se descolar da realidade, considerando-se protegido. O acesso privilegiado a uma operação muitas vezes coloca o jornalista no que pode ser o limite entre reportagem e espionagem. Saber de antemão de operações militares, fotografar ou filmar posições inimigas e instalações sensíveis, testemunhar a preparação de deslocamentos de forças, tudo isso mexe com informação vital e sensível.

Nada disso retira a proteção à qual o jornalista tem direito por lei, mas tudo isso aumenta em muito o risco. A história está repleta de exemplos de jornalistas que perderam a vida ou a liberdade, a despeito da proteção legal a que tinham direito.

A própria Resolução 2222 adotada pelo Conselho de Segurança nas Nações Unidas em 2015 é um exemplo dessa advertência prudente. Ela reconhece a importância das normas, mas faz notar que "a impunidade dos crimes cometidos contra jornalistas" é o padrão e adverte que "garantir a responsabilização por esses crimes é um elemento-chave na prevenção de futuros ataques", embora isso raramente aconteça.

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