Médico em Gaza descreve cenas de horror após ataques aéreos de Israel

Hospitais se assemelham a valas comuns devido ao volume de mortos, e não há anestésicos nem para cirurgias de crânio

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Hiba Yazbek Karen Zraick
The New York Times

O bairro de Jabalia, ao norte da cidade de Gaza, foi bombardeado por ataques aéreos israelenses pelo terceiro dia consecutivo na última quinta-feira (2), enquanto médicos que tratavam as vítimas descreviam o pesadelo em operar sem suprimentos básicos ou anestesia.

O médico Hussam Abu Safyia, diretor da ala pediátrica do Hospital Kamal Adwan, para onde muitas das vítimas dos ataques em Jabalia foram levadas, disse que a maioria das pessoas que chegavam eram crianças. Muitas, gravemente queimadas ou sem algum membro.

Palestino em meio à escombros do ataque de Israel à Jabalia, maior campo de refugiados em Gaza
Palestino em meio à escombros do ataque de Israel à Jabalia, maior campo de refugiados em Gaza - Mohammed Al-Masri/Reuters

Na terça-feira, 31, após o primeiro ataque em Jabalia, o hospital recebeu cerca de 40 mortos e outros 250 feridos, disse ele. Os números foram quase os mesmos na quarta-feira, quando outro ataque ocorreu. Na quinta-feira, uma escola das Nações Unidas, que estava sendo usada como abrigo, ficou danificada e enviou mais pacientes: 10 mortos e 80 feridos.

"Nunca, na minha vida, vi ferimentos tão graves", disse Abu Safyia na quinta-feira por telefone, acrescentando: "Vimos crianças sem cabeça".

A UNRWA, agência da ONU para refugiados palestinos e administradora da escola, disse que o local estava entre quatro de seus abrigos —comportando quase 20 mil pessoas— que foram danificados. Ao menos 20 pessoas foram relatadas como mortas no abrigo de Jabalia, disse a agência, juntamente com três pessoas em outros ataques nos campos de Shati e Bureij.

O Exército de Israel disse que, em seus ataques a Jabalia, estava mirando comandantes do Hamas, que desempenharam papéis-chave nos ataques em 7 de outubro, no qual autoridades israelenses contabilizam ao menos 1.400 mortos. As tropas também disseram que o Hamas tinha uma extensa rede de túneis na região.

Na quarta-feira, Abu Safyia disse estar trabalhando com um colega na unidade de terapia intensiva neonatal do hospital —uma das duas unidades que ainda tinham energia em meio a uma grave escassez de combustível— quando as vítimas de Jabalia começaram a chegar.

Quando eles correram para a sala de emergência para ajudar, ele disse que seu colega ficou chocado ao ver que dois de seus próprios filhos estavam entre os mortos. O menino, de 9 anos, e a menina, de 7, foram mortos em sua casa junto a vários de seus irmãos e parentes.

"Estamos trabalhando em um lugar onde a qualquer momento esperamos que nossos filhos, cônjuges, irmãos ou amigos entrem em pedaços", disse Safyia.

Algumas crianças não puderam ser identificadas devido à gravidade de seus ferimentos. O necrotério do hospital estava tão cheio que as pessoas estavam empilhando corpos um em cima do outro.

"Desejamos a morte", disse Abu Safyia. "É mais fácil do que ver as cenas horríveis que estamos testemunhando."

Ele acrescentou: "Imagens ao vivo estão sendo transmitidas para o mundo inteiro de pessoas explodindo em pedaços, de mulheres e crianças sendo assassinadas. Por quê? O que elas fizeram de errado?"

O hospital, que fica na cidade de Beit Lahia, ao norte de Jabalia, estava com estoque extremamente baixo de suprimentos médicos, assim como todos os outros na Faixa de Gaza, segundo Safyia. Sem anestesia, os médicos estavam operando pessoas com ferimentos graves usando analgésicos de venda livre, como paracetamol, para ajudar a aliviar a dor. Eles tinham um suprimento limitado de antibióticos e estavam usando vinagre e cloro para desinfetar feridas, acrescentou.

"Os gritos das crianças durante as cirurgias podem ser ouvidos do lado de fora", disse. "Estamos operando crânios de pessoas sem anestesia".

Médicos e enfermeiros estavam usando lanternas de smartphones para operar no escuro porque uma grave escassez de combustível deixou os geradores do hospital capazes de alimentar apenas dois departamentos, como a UTI neonatal e a sala de emergência pediátrica, onde 12 crianças estão em ventiladores, disse ele. Se o combustível acabar, acrescentou, "o hospital se transformará em uma vala comum".

Horas antes, o porta-voz do Ministério da Saúde de Gaza, Ashraf Al-Qudra, segurou o corpo de uma criança morta envolto em um sudário durante uma entrevista coletiva no Hospital Shifa, enquanto descrevia o crescente número de mortos.

O ministério disse que mais de 9.200 pessoas foram mortas desde o início do bombardeio de Israel em Gaza, incluindo mais de 3.000 crianças. Muitos outros continuam desaparecidos ou enterrados sob os escombros.

O médico Ghassan Abu-Sittah, cirurgião plástico palestino-britânico voluntário na unidade de tratamento de queimaduras do Al-Shifa, o maior hospital de Gaza, disse que local havia recebido cerca de 70 pacientes dos ataques em Jabalia desde terça-feira, e muitos não têm casas para voltar.

Os médicos estavam trabalhando no limite, e as mortes, normalmente evitáveis, começaram a aumentar. Cada cirurgia estava se transformando em um exercício exaustivo de tentar usar o menor número possível de recursos, disse Abu-Sittah.

O Ministério da Saúde de Gaza disse que 16 dos 35 hospitais na Faixa de Gaza já estavam fora de serviço devido a danos ou falta de energia. A maternidade de Shifa estava sendo usada para tratar os feridos, e as gestantes foram transferidas para o Hospital Al Hilo, que o ministério disse ter sido danificado por bombardeios na noite de quarta-feira.

Morador de Jabalia, Ahmad Sardah disse que sua casa foi danificada pelo ataque de quarta-feira, mas conseguiu enviar uma mensagem rápida durante um breve momento de conexão com a internet antes que o contato fosse perdido novamente. "A situação é trágica [no bairro]", dizia.

Em uma postagem no Facebook que conseguiu escrever na quinta-feira, disse: "Se apenas amigos e parentes que estão do lado de fora pudessem nos dizer o que está acontecendo ao nosso redor em vez de nos perguntar como estamos, porque sem internet e linhas telefônicas, tudo o que ouvimos são ataques aéreos e bombas. Onde, como, por quê e quem? Nenhum de nós sabe."

Cientista político da Universidade Birzeit na Cisjordânia ocupada, Ghassan Khatib disse que Jabalia tinha uma reputação como um reduto de resistência à ocupação israelense há anos.

A Primeira Intifada, um levante que durou de 1987 a 1993, começou depois que os residentes do campo foram atropelados por um veículo israelense, explicou Khatib. Seus funerais se tornaram manifestações que se espalharam para o campo de refugiados de Balata, na cidade de Nablus, na Cisjordânia, e em outros lugares.

Tamara Alrifai, uma funcionária da UNRWA, disse que a agência acreditava que cerca de 30 mil dos 116 mil residentes do campo de Jabalia haviam permanecido ali após a ordem de retirada mandada por Israel sob ameaça de bombardeio no mês passado. Não estava claro se todos eles haviam ido para o sul, conforme orientado, ou para outras áreas do norte de Gaza.

Pessoas deslocadas em toda Gaza têm se dirigido aos hospitais, esperando ter uma chance maior de segurança. O Hospital Kamal Adwan também está abrigando mais de 3.000 pessoas deslocadas. Abu Safyia está entre eles e mal consegue dormir. Ele disse que às vezes entra em uma sala vazia, fecha a porta e chora.

"São pessoas que tinham sonhos, tinham vidas, tinham um futuro", lamentou. "Tudo acabou."

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