Vitória de nicaraguense no Miss Universo coloca regime de Ortega em saia justa

Vitória de Sheynnis Palacios, que participou das manifestações históricas em 2018, preocupou ditadura

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São Paulo

Na noite do último sábado (18), a América Central ouviu, pela primeira vez, o nome de um país da região durante o anúncio da nova Miss Universo. O feito teve gosto de Copa do Mundo para a Nicarágua, nação da campeã, mas também evidenciou a turbulência pela qual a região passa.

A edição que deu vitória a Sheynnis Palacios, representante de um país que se transformou em uma ditadura de esquerda nos últimos anos, aconteceu em El Salvador, onde a democracia passa por um processo acelerado de degradação desde a eleição do populista de direita Nayib Bukele, em 2019.

Para o o presidente salvadorenho, a edição é mais uma prova de que seu país "mudou para sempre", como disse no palco do concurso. Tanto o discurso de Bukele quanto a vitória da miss nicaraguense tiveram repercussões em seus respectivos países.

A Miss Universo 2023, Sheynnis Palacios, da Nicarágua, acena após vencer a 72ª edição do concurso, realizado em San Salvador - Marvin Recinos - 18.nov.2023/AFP

Na Nicarágua, pessoas de diversas cidades saíram às ruas em caravanas de carro, buzinando enquanto viam conterrâneos agitando a bandeira do país nas calçadas. O cenário, à primeira vista, parece comum, dado o ineditismo do evento —a única vez em que uma mulher da América Central ganhou o concurso de beleza foi em 2002, quando a panamenha Justine Pasek foi elevada ao título após a vencedora, a russa Oxana Fedorova, ser destituída meses após ganhar o prêmio.

A comemoração, porém, não tinha nada de banal. Desde que os símbolos nacionais foram usados em protestos contra o regime de Daniel Ortega, em abril de 2018, a bandeira virou alvo de desconfiança de agentes do regime.

"O papel da bandeira nicaraguense nos protestos de 2018 foi central e espontâneo", afirma Douglas Castro, ativista da Aliança Cívica por Justiça e Democracia da Nicarágua. O grupo, que reúne diversos setores da sociedade civil, nasceu após as manifestações daquele ano, que deixaram ao menos 355 mortos, segundo a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos).

Gestado nas redes sociais e nos ambientes acadêmicos nicaraguenses, o movimento não contou com a liderança de partidos políticos e passou a usar a bandeira do país em contraposição aos símbolos da Frente Sandinista de Libertação Nacional, sigla no poder.

"Usar a bandeira nicaraguense, algo tão comum e que para muitas pessoas pode parecer inclusive conservador, é um símbolo de rebeldia na Nicarágua", afirma Castro. "Em um país tão reprimido, em que as pessoas estão asfixiadas por não poderem se manifestar, foi um respiro de ar fresco poder sair com a bandeira e gritar na rua."

A própria Sheynnis participou dos protestos de cinco anos atrás, quando tinha 18 anos —fotos da agora Miss Universo nas marchas viralizaram antes da cerimônia. Em uma das imagens, ela segura a bandeira nicaraguense ao lado de centenas de manifestantes; em outra, posa ao lado do cantor Carlos Mejía Godoy —o artista é considerado a voz da Revolução Sandinista, levante do século 20 que derrotou a ditadura da família Somoza e projetou Ortega. Atualmente, Godoy vive exilado nos Estados Unidos.

As fotos deixaram o regime sob alerta.

Em um programa da Viva Nicaragua, emissoras estatal e amiga da ditadura, a apresentadora Francelyz Sandoval chegou a dizer que chamaria Sheynnis de "Miss Buñuelos" —bolinho frito a base de mandioca típico da Nicarágua, que a miss vendia com a família.

"Essa é uma sobremesa nicaraguense muito popular, porque é de origem humilde. É um ataque classista de um regime que diz representar os pobres e lutar contra a oligarquia", afirma Castro.

Após a coroação, as autoridades mudaram o tom e, em uma atitude dúbia, enviaram funcionários da Prefeitura de Manágua e policiais à casa dos familiares da miss para parabenizá-los pela conquista. Dias depois, a número dois do regime e esposa de Ortega, Rosario Murillo, atribuiu aos opositores da ditadura a tentativa de se aproveitar da vitória de Sheynnis.

"Vemos um uso grosseiro [da situação] e da tosca e maligna comunicação terrorista, que pretende transformar um lindo e merecido momento de orgulho e celebração em golpismo destrutivo, ou em um retorno, obviamente impossível, das nefastas práticas egoístas e criminosas daqueles que, como vampiros e parasitas, aproveitaram-se do povo", afirmou ela, na última quarta-feira (22).

Um dia antes, os artistas nicaraguenses Kevin Laguna Guevara e Oscar Danilo Parrilla Blandón, conhecidos como Vink Art e Torch Místico, respectivamente, foram proibidos de terminar um grafite que estavam fazendo em homenagem a Sheynnis na cidade de Estelí, no noroeste da Nicarágua. De acordo com a imprensa local, os artistas afirmaram que autoridades os impediram de continuar pintando. "O mural foi cancelado. As pessoas o enxergaram como uma mensagem política", afirmou Blandón.

"Esse equilíbrio de tentar aproveitar a imagem dela, mas, ao mesmo tempo, não dar muita força, é algo bastante complicado para o regime gerenciar", diz Castro. "Um concurso como o Miss Universo, que em qualquer país não tem nenhuma controvérsia de caráter político, na Nicarágua tem, pela natureza do regime."

Em El Salvador —país que, com o sinal trocado, toma medidas semelhantes à da Nicarágua de 2018— também houve polêmica, ainda que em outra escala.

Ovacionado ao entrar no palco do Miss Universo, o presidente salvadorenho, que sustenta a mais alta taxa de popularidade do continente, disse que o concurso deu ao país a oportunidade de mostrar ao mundo do que é capaz. "Obrigada por escolherem participar do renascimento de El Salvador. Mas isso é só o começo", afirmou.

Naquele mesmo dia, centenas de pessoas se manifestaram nas ruas da capital, San Salvador, contra o regime de exceção que Bukele instituiu em março de 2022 e que fez o país ser aquele que, proporcionalmente, mais prende no mundo.

"Com esses concursos e espetáculos, o regime tenta encobrir a violação dos direitos humanos que o regime de exceção está causando", disse à agência de notícias AFP Samuel Ramírez, coordenador do Movimento de Vítimas do Regime. "Bukele mantém as pessoas em um regime que limita garantias e direitos constitucionais, e no qual podem capturar uma pessoa por uma simples suspeita, pela aparência, sem ordem judicial ou sem qualquer crime."

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