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Colombianos admiradores de Bukele viajam a El Salvador e acabam presos

Estrangeiros foram detidos por infundada associação a gangues alvos de estado de exceção no país

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São Paulo

Em julho do ano passado, o colombiano Manuel Castrillón chegou a El Salvador para ver de perto as transformações que aconteciam no país —ao menos segundo suas redes sociais. "Comentei com a minha esposa que El Salvador estava bonito e bom para trabalhar. Sou técnico em mecanização agrícola, então disse a ela que ia para lá", contou ele à Folha.

Seus planos foram interrompidos no último dia 21 de janeiro. Castrillón acabara de se juntar a um amigo de infância, o soldador José Antonio Potes, quando foi abordado por policiais no início da tarde em Soyapango. Em apenas algumas horas eles estavam algemados e detidos, e em dois dias estavam em uma cela dividindo quatro baldes que serviam de banheiro para mais de 300 prisioneiros.

Soldados salvadorenhos cercam cidade após morte de agente de segurança - Presidência de El Salvador via AFP

Ali ficaram por três meses, até uma campanha da família de Potes recorrer à imprensa colombiana para tentar libertá-lo. Segundo Castrillón, a Procuradoria afirmou que eles estavam sendo investigados por pertencer à Barrio 18, pandilha que rivaliza com a Mara Salvatrucha —as duas gangues mais conhecidas entre os grupos do crime organizado no país. A tatuagem de Potes, uma homenagem à sua avó, parece ter despertado a desconfiança dos policiais no momento da prisão, diz Castrillón.

Caminhando para o 15º mês, o estado de exceção em El Salvador virou regra. Com Legislativo e Judiciário neutralizados, o presidente salvadorenho, Nayib Bukele, levou a política de linha dura a um patamar nunca experimentado no país, que deixou de ser uma das nações mais violentas do mundo e passou a liderar a lista das que mais encarceram.

Quem se informa pelas suas redes sociais, porém, pode enxergar apenas um presidente apaixonado. "Pagarão caro pelo assassinato de nosso herói", afirmou, por exemplo, nesta quarta-feira (17), sobre a morte de um agente da Polícia Nacional. "Desde a madrugada, estabelecemos um cerco de segurança ao redor do município de Nueva Concepción com mais de 5.000 elementos das Forças Armadas." Acompanha a publicação um vídeo que mostra centenas de militares enfileirados e exibindo armas pesadas —produção digna de filme policialesco.

Os encarcerados também aparecem nas suas redes —normalmente, jovens tatuados com as iniciais dos grupos criminosos do país, tipo que habita o imaginário da população que sofre com a insegurança em El Salvador. A despeito da ausência de garantias de defesa, que pode fazer um inocente ficar indefinidamente em prisão preventiva, eles são chamados de pandilheiros e têm seus rostos exibidos aos mais de 5 milhões de seguidores de Bukele.

As suspeitas de negociações entre funcionários do governo e membros de pandilhas investigadas pela Justiça americana não aparecem nas redes do presidente, assim como as denúncias de maus-tratos feitas por organizações de direitos humanos. Segundo uma delas, a Cristosal, pelo menos cem pessoas morreram sob custódia do Estado desde o início do regime de exceção.

Antes de entrar na prisão, Castrillón conta que ele e seu amigo tiveram o cabelo raspado e foram agredidos. Uma vez na cela, os amigos deixaram de ter qualquer contato com o mundo exterior e não tinham ideia de quanto tempo ficariam presos —eles conheceram um conterrâneo que estava naquela situação desde dezembro. As camas de metal eram insuficientes para os encarcerados, que não conseguiam manter a limpeza da cela superlotada e viam doenças como a sarna se alastrar. "Isso dá uma coceira horrível no corpo, você fica cheio de urticárias que não te deixam dormir", afirma.

A falta de notícias fez a família de Potes se mobilizar e recorrer à imprensa colombiana. "Todos os dias eu me deito e choro", afirmou sua mãe, Eliana, durante uma entrevista à emissora Notícias Uno em abril. Ao lado de sua nora, Claudia Marcela, ela reclamava por não poder ver seu filho e argumentava que um dos motivos da prisão era uma tatuagem. "Ele tem só uma tatuagem no peito, e é em homenagem à minha mãe, as datas em que ela nasceu e em que morreu", afirma.

A repercussão não agradou Bukele, um publicitário com experiência em campanhas políticas. Em abril, Castrillón e Potes foram chamados de suas celas e informados de sua liberdade. Segundo o colombiano, eles ouviram um pedido de desculpas e a explicação, repetidas vezes, de que a detenção foi por questões migratórias, não pela guerra contra as pandilhas, contrariando a própria Procuradoria.

Antes de voltarem a seu país, um dos funcionários pediu que gravassem um vídeo e repetissem a justificativa oficial para a prisão. "Já estávamos havia três meses praticamente sob tortura, sem saber nada, preocupados pela nossa família, e então nos libertam. Pensamos, 'bom, vamos gravar'", diz o colombiano.

"Neste momento estou nas ruas de El Salvador como uma pessoa comum, uma pessoa livre, aproveitando a minha liberdade e com vontade de começar uma nova história neste lindo país", afirma Potes, enquanto se filmava, segundo Castrillón, a pedido do governo. "As notícias de que eu estava na prisão por algo relacionado às pandilhas foram um mal entendido; foi por uma questão migratória."

Após esse vídeo, saíram outros. Em um quiosque de praia ao lado de uma banda salvadorenha, por exemplo, ou em um quarto de hotel com roupas novas —em todos, "acompanhados por membros do governo de El Salvador que cobriram todas as despesas", denunciou Castrillón em sua conta no Twitter, que já foi bloqueada por Bukele, segundo ele.

"Isso reflete como a imagem é de altíssima importância para esse governo. Eles sabem que a população em geral e a comunidade internacional de nenhuma maneira podem estar de acordo com a captura de pessoas inocentes sem o devido processo legal", afirma Ruth Lopez, chefe da Justiça da ONG Cristosal. "Esse caso mostra a inexistência de critérios para realizar uma detenção em El Salvador. O que aconteceu com eles é o que está acontecendo com milhares de salvadorenhos."

A despeito de todos os escândalos envolvendo presos no regime de exceção, Bukele terminou 2022 com 87,8% de aprovação dos salvadorenhos, segundo pesquisa do jornal local La Prensa, o que faz dele o presidente mais popular das Américas.

A Folha entrou em contato com a embaixada de El Salvador no Brasil com questionamentos acerca dos casos relatados e não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

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