Os chilenos rejeitaram pela segunda vez a proposta de uma nova Constituição e frearam um avanço da ultradireita no país: com 99% das urnas apuradas, 56% da população havia votado contra e 44%, a favor do texto consolidado por essa força política nos últimos meses, em referendo realizado neste domingo (17).
Depois de quatro anos de discussão, a população finalmente enterrou a possibilidade de revisar a Carta Magna liberal herdada do regime do ditador Augusto Pinochet, escrita em 1980 e abrandada nos anos 2000. Simbolicamente, o resultado também é uma espécie de vitória às avessas do presidente de esquerda, Gabriel Boric.
Ele foi eleito em 2021 após ter pressionado seu antecessor de direita, Sebastián Piñera, a dar início ao processo constitucional. Depois, porém, viu uma primeira versão considerada bastante progressista do texto ser rejeitada em 2022. Agora, ganhou um respiro com a recusa da população à segunda versão mais conservadora.
Boric discursou que "o processo constitucional está encerrado" e que agora "as urgências são outras". Criticou opositores por fazerem o que chamou de campanha do medo e por terem tentado transformar a eleição em um plebiscito do seu governo, mas depois fez um chamado à união e aos consensos.
"O fim do processo deve gerar um clima para um melhor entendimento", disse ele, admitindo que a proposta de reforma constituinte acabou gerando frustração e desinteresse em boa parte da população. "Nem celebração, nem arrogância. Bola no chão, humildade e trabalho. Muito trabalho", afirmou.
Para o cientista político Gabriel Gaspar, ex-embaixador e ex-subsecretário de Defesa desta gestão, o presidente conseguiu um alívio parcial, mas ainda não está claro se poderá recuperar a agenda nacional. "Se a proposta da direita tivesse triunfado, Boric teria ficado enfraquecido pelo resto de seu mandato", afirma.
Segundo ele, "o resultado significa principalmente uma derrota dos republicanos [grupo do ex-presidenciável José Antonio Kast], coloca a direita tradicional em primeiro plano e fortalece a candidatura presidencial para 2025 de Evelyn Mathei", popular subprefeita de Providência, região de classe média-alta na capital Santiago.
Nos colégios eleitorais, durante o dia, o clima era de que a Constituição atual é "a menos pior". "Prefiro ficar com a Constituição ruim de Pinochet do que com a pior de Kast", dizia a designer Antonieta Fuentes, 34, do lado de fora do Estádio Nacional, lugar simbólico por ter sido usado como centro de detenção e tortura durante a ditadura.
O aborto foi um dos temas que dividiu a população. "Nos custou muito conseguir avançar em liberar o aborto [em casos de estupro, má-formação do bebê e risco para a mãe]", argumentava ela. "Seria um grande retrocesso para os direitos das mulheres", corroborava a cineasta Carolina Ronda, 46.
O novo texto abria brecha para dificultar o procedimento ao adicionar um conceito chamado "objeção de consciência" —o direito de uma pessoa a negar práticas profissionais que sejam contrárias às suas convicções.
A população sai do longo processo constitucional em clima de cansaço, por isso esperava-se uma alta abstenção. Mas a participação foi de 84% e variou pouco em relação à eleição do conselho constituinte em maio (83%). Também foi apenas um pouco mais baixa do que no referendo da primeira versão do texto no ano passado (86%).
A oposição culpou a esquerda pela exaustão. "Os chilenos estão cansados do tema constitucional, aberto há quatro anos pela esquerda. [...] Que a política agora se ocupe dos assuntos realmente importantes", discursou Javier Macaya, presidente do partido UDI (União Democrata Independente), representante da direita tradicional.
De lá para cá, o país sofreu mudanças importantes. Nos últimos anos, tem vivido uma retração econômica, com alta da inflação, da pobreza, da informalidade e dos crimes. Também passa por uma crise migratória, com a chegada de venezuelanos e peruanos, o que tem impulsionado os discursos linha-dura.
Esses temas foram usados pelos defensores da última proposta de Constituição, como Kast. Depois da divulgação dos resultados, o político ultraconservador admitiu que os republicanos não foram capazes de convencer a população, mas disse que, se "não podemos celebrar, tampouco a esquerda pode".
Ele afirmou que a votação demonstra que os "chilenos não querem mais discursos, querem mudanças" e que agora se encerra uma "etapa crítica da história".
Ele se refere a um ciclo que começou em 2019, quando surgiu a demanda por uma nova Carta Magna após o que ficou conhecido como "estallido social": protestos em massa que tiveram como gatilho o aumento do valor da passagem de metrô. Algo parecido com os atos de junho de 2013 no Brasil, só que mais extenso e violento.
Um ano depois, 78% da população apontou em referendo com voto voluntário que queria um novo texto. Boric assumiu a Presidência prometendo a mudança, mas viu o projeto fracassar.
A primeira redação, com quase 400 artigos, redigida por uma maioria de legisladores independentes de esquerda, com paridade de gênero e representação dos povos originários, também foi rejeitada por 62% da população.
Ela transformava o Chile em um Estado plurinacional, garantia o direito ao aborto e considerava a água um bem "inapropriável". Também enfocava os sistemas públicos de aposentadoria, saúde e moradia, na contramão da carta escrita pelo regime liberal de Pinochet, que os chilenos agora decidiram manter.
ENTENDA AS MUDANÇAS NA CONSTITUIÇÃO CHILENA
Constituição vigente | Proposta constitucional |
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O Chile é uma república democrática. | O Estado do Chile é social e democrático de direito, reconhece os direitos e liberdades fundamentais, os deveres constitucionais, e promove o desenvolvimento progressivo dos direitos sociais, sujeito ao princípio da responsabilidade fiscal e através de instituições estatais e privadas. |
É dever preferencial do Estado garantir a execução das ações de saúde, quer sejam prestadas por meio de instituições públicas ou privadas, na forma e nas condições que determine a lei, que poderá estabelecer contribuições obrigatórias. Cada pessoa terá o direito de escolher o sistema de saúde que desejar, seja estatal ou privado. | É dever preferencial do Estado garantir a execução das ações de saúde, por meio de instituições estatais e privadas, na forma e nas condições que determine a lei, que poderá estabelecer contribuições obrigatórias. Cada pessoa terá o direito de escolher o sistema de saúde que desejar, seja estatal ou privado. |
A lei protege a vida do que está por nascer. | A lei protege a vida de quem está por nascer. |
A constituição assegura a todas as pessoas (...) a liberdade de consciência, a manifestação de todas as crenças e o exercício livre de todos os cultos que não se oponham à moral, aos bons costumes ou à ordem pública. | A Constituição assegura a todas as pessoas (...) o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião. (...) Inclui também a objeção de consciência, que será exercida de acordo com a lei. |
Sem menção. | O Estado implementará medidas de mitigação e adaptação de forma oportuna, racional e justa, ante os efeitos das mudanças climáticas. Da mesma forma, promoverá a cooperação internacional para alcançar estes objetivos. |
LINHA DO TEMPO DA REFORMA CONSTITUCIONAL DO CHILE
- Out-nov.19 Protestos em massa pedem mudanças profundas no país
- Out.20 Em referendo, 78% dos chilenos dizem querer nova Constituição
- Mai.21 População elege Assembleia Constituinte com 154 cidadãos, mais à esquerda
- Mar.22 Gabriel Boric assume a Presidência no lugar de Sebastián Piñera
- Set.22 Texto apresentado é rejeitado por 62% dos chilenos em referendo
- Mai.23 País elege novo conselho constituinte com 50 políticos, mais à direita
- Dez.23 Em novo referendo, 56% dos chilenos rejeita definitivamente nova Constituição
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