Projétil que matou jornalista saiu de tanque de Israel, dizem agências de notícias

Exército israelense disse lamentar o ocorrido e afirmou estar investigando o incidente

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Maya Gebeily Anthony Deutsch David Clarke
Beirute | AFP e Reuters

O projétil lançado no sul do Líbano no dia 13 de outubro que matou um jornalista e feriu outros seis saiu de um tanque do Exército de Israel, segundo investigações realizadas pelas agências de notícias AFP e Reuters e divulgadas nesta quinta-feira (7).

O bombardeio a pouco mais de um quilômetro da fronteira israelense, perto da vila libanesa de Alma al-Chaab, matou o cinegrafista da Reuters Issam Abdallah, 37, e feriu gravemente a fotógrafa da AFP Christina Assi, 28, que teve uma perna amputada e ainda está hospitalizada. O grupo de sete jornalistas incluía também profissionais da Al Jazeera, e todos usavam capacetes azuis e coletes à prova de balas —a maioria com a a palavra "imprensa" escrita em letras brancas.

Issam Abdallah durante a cobertura da Guerra da Ucrânia, em Zaporíjia - Ueslei Marcelino - 17.abr.2022/Reuters

O ataque foi o primeiro de dois bombardeios mortais a jornalistas em um período de seis semanas no sul do Líbano, onde há hostilidades desde o ataque do grupo terrorista Hamas, em 7 de outubro. No segundo, em 21 de novembro, dois profissionais da emissora libanesa Al Mayadeen morreram.

Em 13 de outubro, relatos de combatentes armados tentando se infiltrar em Israel a partir do Líbano e de um bombardeio na fronteira atraíram repórteres de pelo menos dez organizações de notícias libanesas e estrangeiras —incluindo a emissora italiana RAI, o jornal alemão Die Welt e a Associated Press— para Alma al-Chaab.

Uma equipe de três jornalistas da Reuters e dois da AFP foram para o local, de onde a Al Jazeera já havia feito transmissões ao vivo naquele dia. Às 17h16 locais, a primeira agência começou a transmitir imagens ao vivo. Depois de filmar por 45 minutos, a equipe da Reuters virou a câmera para transmitir um posto militar israelense a pouco mais de 2 km de distância, em Hanita, e filmou um tanque disparando um projétil em direção ao sul do Líbano. As equipes da AFP e da Al Jazeera fizeram o mesmo.

Menos de 90 segundos depois, o tanque de outro posto lançou o primeiro dos dois disparos, atingindo Abdallah e o muro em que ele estava apoiado. O cinegrafista morreu na hora.

A alguns metros de distância, as câmeras da AFP e da Al Jazeera continuaram transmitindo e capturaram nuvens de poeira e gritos de Assi, da agência francesa, que havia sido atingida nas pernas por estilhaços.

Após 37 segundos, um segundo projétil atingiu o carro da emissora do Qatar, incendiando o veículo e interrompendo a transmissão da AFP. A câmera da Al Jazeera caiu e seguiu filmando o céu e capturando os xingamentos e gritos dos jornalistas feridos.

A Reuters entrevistou mais de 30 autoridades governamentais e de segurança, especialistas militares, investigadores forenses, advogados, médicos e testemunhas, além de analisar vídeos de oito veículos de comunicação que estavam ali, incluindo imagens de satélite de alta resolução. A agência também coletou estilhaços no chão e em um carro da Reuters, três coletes à prova de balas, uma câmera, um tripé e uma grande peça de metal.

A Organização Holandesa de Pesquisa Científica Aplicada (ou TNO, na sigla em holandês), um instituto independente que testa e analisa munições e armas para clientes como o Ministério da Defesa holandês, examinou o material para a Reuters em seus laboratórios, em Haia.

As conclusões basearam-se principalmente em três elementos: a peça de metal, que era um fragmento da cauda de um projétil; um vídeo inédito fornecido pela emissora italiana RAI, que mostrava o ponto de lançamento e o voo do segundo projétil; e o áudio do disparo e do impacto de ambos os lançamentos da transmissão ao vivo da Al Jazeera.

Fotografias e vídeos feitos por Thaier al-Sudani e Maher Nazeh, fotógrafo e cinegrafista da Reuters, respectivamente, mostram a peça de metal no chão perto do corpo de Abdallah minutos após o ataque. Segundo a entidade holandesa, uma imagem de satélite de 12 de outubro e uma foto tirada por Abdallah pouco antes do bombardeio não tem sinais de ataques, como crateras, destroços ou marcas de incêndio. O fragmento de projétil, então, está relacionado ao ataque.

Em análise laboratorial, a TNO identificou estrôncio e magnésio em um pequeno compartimento da peça, elementos que são compostos típicos de traçadores —carga que queima durante o voo de um projétil para mostrar seu trajeto. A entidade sustenta ainda que o metal faz parte de um projétil disparado usando um canhão de tanque cujo cano tem 120 mm de diâmetro.

As brigadas do norte de Israel são equipadas com tanques de batalha Merkava, que possuem canhões com essa característica, segundo Nick Reynolds, pesquisador do Royal United Services Institute, em Londres.

Não há registros de que o Hezbollah, grupo que atua no Líbano e que Tel Aviv confrontava naquele dia, opere tanques com projéteis de 120 mm, disseram três especialistas militares. Já o Exército libanês disse à Reuters que seu projétil de maior calibre é de 105 mm e que não mantém tanques na fronteira com Israel.

Para geolocalizar o ponto de disparo, a organização holandesa analisou vídeos e áudios.

Jornalistas da RAI estavam filmando o bombardeio quando ouviram o primeiro ataque e viraram a câmera em direção ao som da explosão. As imagens mostram nuvens de poeira onde o projétil atingiu e fumaça do local que foi disparado.

A câmera, então, capturou o segundo ataque. O projétil é disparado da mesma área em que ainda havia fumaça suspensa, e partes do carro da Al Jazeera são lançadas acima das árvores com o impacto.

Usando o áudio da emissora qatari, a entidade de Haia calculou o intervalo entre o som dos dois ataques e o estrondo dos lançamentos, determinando que o ponto de disparo estava a 1.343 metros dos repórteres. A TNO afirmou que as assinaturas sonoras dos ataques coincidem e, portanto, ambos eram projéteis de tanque disparados da mesma posição.

Com uma margem de erro de 17 metros, o ponto do disparo coincide com uma rampa de terra em um posto militar em Jordeikh, dentro do território israelense. Especialistas militares dizem que tanques sobem essas rampas para disparar e depois recuam para se proteger.

"Por meio de triangulação, conseguimos determinar o ponto de disparo, que fica logo atrás da Linha Azul da ONU", disse Erik Kroon, investigador-chefe da TNO, em referência à fronteira demarcada após as forças israelenses se retirarem do sul do Líbano, em 2000.

Com base nas características dos fragmentos e na velocidade média do lançamento (932 metros por segundo), os projéteis que atingiram os jornalistas eram de dois modelos fabricados pela Elbit Systems, sediada na cidade israelense de Haifa, que não respondeu a pedidos de comentário da Reuters.

Uma análise separada do Centro de Resiliência da Informação também concluiu que os fragmentos eram de um projétil de tanque de 120 mm fabricado pela Elbit Systems. Sediada em Londres, a organização internacional investiga possíveis abusos de direitos humanos e crimes de guerra

Paralelamente, a AFP fez uma investigação nas últimas semanas. A agência enviou a foto de um fragmento de munição encontrado próximo ao corpo de Abdallah a seis especialistas em armamento e à Airwars, uma ONG que examina ataques contra civis em situações de conflito. Todos concordam que era parte de um projétil de tanque de 120 mm, usado exclusivamente pelo Exército israelense.

O fato de os jornalistas terem sido alvo de dois bombardeios com 37 segundos de intervalo entre o primeiro e o segundo exclui a possibilidade de disparo acidental, afirmaram os especialistas.

O cinegrafista da Reuters Maher Nazeh, 53, baseado em Bagdá, disse que ele e seus colegas escolheram o local porque era no topo de uma colina, em uma área aberta, sem cobertura de árvores ou outros prédios para ocultar os repórteres.

O jornalista disse ainda que eles se sentiam relativamente seguros, porque estavam claramente identificados como jornalistas e à vista do Exército israelense. "Minha avaliação é que estávamos no local mais seguro possível. Estávamos muito confortáveis, sentados, filmando e rindo e não nos sentindo em perigo. Nunca esperaríamos que eles atingissem jornalistas", disse.

O jornalista de vídeo da AFP Dylan Collins, 35, que foi atingido por estilhaços do segundo ataque, concordou.

"Não estávamos nos escondendo debaixo das árvores ou algo assim. Éramos sete jornalistas muito claramente identificados, com coletes de imprensa e capacetes, com um carro em que está escrito 'TV', em uma área aberta em frente a um posto militar israelense", disse ele. "Eles sabiam que estávamos lá há mais de uma hora."

A Human Rights Watch afirma que os bombardeios foram "aparentemente deliberados contra civis, o que é um crime de guerra" e que "poderiam ou deveriam ser investigados como crimes de guerra". Já a Anistia Internacional afirmou que o incidente foi "provavelmente um ataque direto contra civis, que precisa ser investigado como crime de guerra".

À Reuters, o tenente-coronel Richard Hecht, porta-voz internacional do Exército israelense disse que Tel Aviv não visa a jornalistas e não fez mais comentários. À AFP, um porta-voz disse que Israel estava investigando o incidente. "Sentimos muito pela morte do jornalista", disse o militar.

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