Sob bombardeio, familiares deixam mortos em Gaza sem velório e enterro digno

Corpos ficam por dias em casa e são sepultados sem cerimônias em quintais, pátios de hospitais e valas comuns

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Raja Abdulrahim
The New York Times

Durante quatro dias, o corpo de Kareem Sabawi ficou envolto em um cobertor em um apartamento frio e vazio, enquanto sua família se abrigava nas proximidades. Seu pai e sua mãe disseram que ele foi morto durante um intenso bombardeio israelense perto de sua casa, e nos dias seguintes era muito perigoso sair e dar um descanso final ao filho de 10 anos.

A família ligou para o Crescente Vermelho da Palestina em busca de ajuda. Mas eram os primeiros dias da invasão terrestre de Israel na Faixa de Gaza, e militares bloqueavam as ruas com tanques e tiros, impedindo que socorristas chegassem aos mortos pelos ataques aéreos. Todos os dias, o pai, Hazem Sabawi, sofria uma dupla tormenta —lamentando a perda de seu filho e incapaz de lhe proporcionar o último ato de dignidade de um enterro adequado.

Palestinos mortos em ataques aéreos em Gaza são enterrados em vala comum na cidade de Rafah, no sul do território
Palestinos mortos em ataques aéreos em Gaza são enterrados em vala comum na cidade de Rafah, no sul do território - Ibraheem Abu Mustafa - 26.dez.2023/Reuters

"Depois do quarto dia, eu disse chega. Ou eu serei enterrado com ele, ou não o enterrarei de jeito nenhum", disse ele, contando como enterrou seu filho debaixo de uma árvore de goiaba atrás do prédio de um vizinho. "Todo ser humano tem o direito de ser enterrado", afirmou Sabawi.

Já se passaram 13 semanas desde o início da guerra de Israel em Gaza após o ataque de Hamas no dia 7 de outubro que matou cerca de 1.200 pessoas, segundo estimativas israelenses. Desde então, os habitantes do terrritório palestino são obrigados a enterrar seus mortos às pressas e sem cerimônia ou últimos ritos, para não correrem o risco de terem o mesmo destino de seus familiares mortos.

Mais de 22 mil palestinos foram mortos por Israel desde a invasão do grupo terrorista, segundo o Ministério da Saúde de Gaza. Civis estão sendo mortos a um ritmo sem precedentes neste século. O conflito transformou Gaza em um "cemitério para milhares de crianças", disse a ONU.

"A situação chegou ao ponto em que dizemos: Os sortudos são aqueles que têm alguém para enterrá-los quando morrem", disse Mohammad Abu Moussa, radiologista do hospital Nasser, no sul de Gaza.

Tradicionalmente, os palestinos honram seus mortos com procissões fúnebres públicas e tendas de luto erguidas nas ruas por três dias para receber aqueles que desejam oferecer condolências. Mas a guerra tornou essas tradições impossíveis de serem mantidas.

Em vez disso, os mortos têm sido enterrados em valas comuns, pátios de hospitais e jardins dos fundos, muitas vezes sem lápides, seus nomes escritos em sudários funerários brancos ou sacos para corpos. Orações fúnebres são feitas rapidamente, quando o são, nos corredores do hospital ou fora dos necrotérios.

Nebal Farsakh, porta-voz do Crescente Vermelho palestino, disse que a violência muitas vezes tornava impossível para os socorristas chegarem aos locais de ataque ou recuperarem os corpos. Algumas famílias ficaram presas dentro de suas casas por dias com os corpos de seus entes queridos, afirmou ela.

Autoridades de saúde de Gaza estimam que cerca de 7.000 pessoas estão desaparecidas, a maioria presumida morta sob a enorme destruição do ataque de Israel. Em algumas casas, as pessoas pintaram os nomes daqueles que acreditam estar enterrados sob os escombros.

À medida que quase 2 milhões de civis foram deslocados e fizeram caminhadas perigosas a pé até o sul de Gaza —passando por forças israelenses com armas apontadas para eles— alguns descreveram ter visto dezenas de corpos ao longo do caminho em decomposição. Eles disseram ao New York Times que os soldados israelenses não permitiam que eles sequer cobrissem, quanto mais enterrassem, os mortos que viam.

O Exército israelense disse ter impedido as pessoas de se aproximarem dos corpos "por razões operacionais" e também para determinar se algum dos mortos poderia ser reféns israelenses levados pelo Hamas a Gaza.

Para Sabawi, enterrar Kareem foi o mínimo que ele poderia fazer por um filho que sentia que não conseguia proteger.

Ele e sua esposa disseram que um ataque aéreo israelense atingiu um local perto de sua casa no início de novembro, quando sua família preparava o almoço com a pouca farinha e mantimentos que tinham. Sabawi foi jogado para o alto, e quando ele caiu no chão, a porta da cozinha caiu sobre ele. Quando ele se levantou, viu Kareem sangrando profusamente da cabeça.

Sabawi disse que o pegou no colo, mesmo com o braço ferido, e a família correu para o apartamento de um vizinho. Kareem ainda estava respirando quando seu pai, em pânico, fez uma massagem cardíaca nele.

Era tarde demais.

Vizinhos acolheram a família e trouxeram um cobertor para envolver o corpo de Kareem, disse Sabawi. Ele esperou quatro dias, temendo que pudessem ser mortos por um ataque aéreo ou soldado israelense se saíssem para enterrá-lo. No quinto dia, Sabawi e um vizinho recitaram a proclamação muçulmana de fé antes de sair do apartamento.

No jardim atrás do prédio, eles cavaram uma cova rasa e colocaram Kareem nela, cobrindo-o com terra e voltando correndo para dentro.

"No dia seguinte, desci novamente para colocar mais terra sobre o túmulo", disse Sabawi. Na árvore, ele pendurou uma lápide improvisada e colocou um tijolo no topo. "Toda vez que havia uma oportunidade, eu descia para colocar mais terra para que se tornasse um túmulo adequado."

Sua esposa, Suha Sabawi, 32, disse que sabia que nem todos os pais em Gaza tiveram a oportunidade de ter um encerramento como esse, tão agridoce. "Muitas pessoas me disseram: 'Graças a Deus você conseguiu enterrar seu filho', porque muitas pessoas não podem enterrar seus filhos", afirmou ela.

Ahmed Alhattab, pai de quatro filhos, disse que um foguete atingiu o prédio em que morava na noite de 7 de novembro na Cidade de Gaza. Havia 32 membros da família dentro, 19 deles crianças. A mídia palestina relatou o ataque na época, colocando o número inicial de mortos em 10.

Alhattab e três de seus filhos escaparam dos escombros, mas um deles teve uma fratura no crânio e estava sangrando. Alhattab entregou seus dois filhos ilesos —de 5 e 9 anos— aos vizinhos e carregou seu filho ferido de 7 anos, Yahya, até encontrar uma ambulância para levá-lo ao hospital.

Por três dias, Alhattab disse que ficou no hospital enquanto seu filho passava por uma cirurgia. O hospital estava prestes a desmoronar enquanto os ataques aéreos e os confrontos aconteciam nas proximidades.

Ele foi informado de que seu filho provavelmente não sobreviveria.

Enquanto parentes se preparavam para fugir, ele disse que tomou a decisão angustiante de deixar Yahya para trás e levar seus outros filhos para o sul, onde esperava que estivessem mais seguros.

Quatro dias depois, ele soube por um amigo que seu filho havia morrido no hospital, onde foi enterrado junto com outros pacientes que faleceram.

"O enterro foi temporário, não sei o que aconteceu com o corpo dele", disse Alhattab.

Trabalhadores da área médica disseram ao New York Times que às vezes tiveram que cavar sepulturas nos pátios dos hospitais. Quando os integrantes da equipe foram obrigados a evacuar pelo Exército israelense, disseram que tiveram que deixar muitos corpos para trás.

Agora, no sul de Gaza, Alhattab diz que quer voltar para casa para recuperar os corpos de sua família.

"Quando enterramos os mortos, os honramos", disse ele. "E isso acalma um pouco o coração. Você sabe onde eles estão enterrados."

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