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Andrei Kurkov

Crianças da Ucrânia terão abrigos antibomba e explosões na memória

Se a Kiev de hoje fosse retratada em um filme mudo, vida pareceria normal; até que sirenes mudariam as expressões

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Andrei Kurkov

Um dos mais conhecidos escritores ucranianos no exterior, é autor de "A Morte e o Pinguim", entre outros; vive em Kiev

Se você fosse fazer um filme mudo nas ruas de Kiev, esta grande cidade poderia lhe parecer completamente normal. A vida pareceria seguir como se você estivesse em Buenos Aires ou Guadalajara. Apenas em algum momento você notaria que os pedestres pararam por um instante para escutar algo, seus rostos em expressão de alarme.

Esse comportamento significa que ouviram uma sirene sinalizando a ameaça de mísseis e drones russos. Os moradores de Kiev, então, deixariam as ruas, caminhando rapidamente para um lugar mais seguro.

Mães e crianças correriam para abrigos antiaéreos ou estações de metrô; é mais fácil esperar o ataque à capital da Ucrânia nesses lugares. Às vezes, elas têm que ficar com seus filhos em um abrigo antiaéreo por várias horas. Serão esses lugares, os sons de explosões e o uivo das sirenes que as crianças de hoje lembrarão quando pensarem em sua infância em tempos de guerra.

Mulheres e crianças se abrigam em estação de metrô durante alerta de ataque aéreo em Kiev, na Ucrânia - Alina Smutko - 26.jul.23/Reuters


As mães ucranianas entendem bem isso e estão mais preocupadas com a forma que seus filhos percebem e vivenciam a guerra. Muito se discute sobre como a guerra afeta a psique das crianças e sua percepção da vida. Mais e mais perguntas têm sido feitas pelas mães sobre como as experiências de seus filhos afetarão seu comportamento como adultos.

Além disso, mães de crianças pequenas estão procurando informações sobre como falar com as crianças sobre guerra e morte, como acalmar os nervos de uma criança durante bombardeios, como distraí-las de sentimentos de medo e ansiedade.

Vários livros infantis sobre esses temas tornaram-se populares. Não menos procuradas são as colunas de jornais e revistas escritas por psicólogos infantis, e as mães compartilham voluntariamente o que aprenderam umas com as outras nas redes sociais.

Embora eu espere que as mães em Cartagena ou em Lima nunca precisem dessas dicas, vou compartilhar alguns conselhos. Se você e seu filho estiverem em um abrigo antiaéreo, ouvirem explosões e a criança estiver encolhida contra você, certifique-se de que ele está respirando normalmente. Você pode levar um kit de bolhas de sabão para o abrigo e tentar fazer seu filho se interessar por soprá-las. Quando uma criança faz isso, ela ativa os pulmões e respira mais profundamente.

Você também pode fazer seu filho brincar de jogos de "imitar o som", expirando ar para soar como um balão descendo ou uma motocicleta ligando. Pode pedir para seu filho cantar músicas. Isso aliviará o estresse e ajudará a restaurar a respiração adequada simultaneamente.

Com crianças muito pequenas, você pode brincar de "elefante". A criança fecha firmemente os ouvidos com as palmas das mãos e depois as abre novamente de repente e com um gesto amplo, imitando as orelhas do animal. Você pode brincar de "mosquitos", quando a criança imagina muitos deles circulando ao redor de sua cabeça e começa a bater palmas para espantar os insetos imaginários.

Se forem ouvidas explosões muito fortes, é importante manter contato físico com a criança: massagear os ouvidos dela e acariciar suas bochechas. De tempos em tempos, você precisa pedir à criança para fingir estar muito cansada, dar um grande bocejo e se esticar.

Depois que o alarme acabar, certifique-se de elogiar a criança por sua coragem. Diga a ela: "Acabou! Estamos seguros! Obrigado por ser tão corajoso e forte! Ouvimos tantas explosões, mas conseguimos superar isso! Não ficamos com medo!" Após essas palavras, você precisa convidar a criança a sugerir o que deseja fazer nas próximas horas. Fazer planos para o futuro é a melhor maneira de distraí-las da guerra. Na verdade, os planos para o futuro também distraem os adultos da guerra. Apenas a realidade da guerra impede os adultos de se concentrarem no futuro.

Também acho difícil me concentrar no futuro. Há, é claro, planos para este ano, mas não há garantia de que serão cumpridos. Quando penso no futuro, olho para o céu. Na Kiev dos dias de hoje, o céu é cinza-azulado. Às vezes, a neve cai do céu nas ruas e há os ruídos habituais da cidade e o choro dos corvos.

O corvo é, de fato, o pássaro símbolo não oficial da cidade. Não voam para longe no inverno, como se assumissem a responsabilidade de serem os patronos da cidade o ano todo. Seu crocitar não pode ser chamado de música. Seus gritos se assemelham mais a avisos de perigo. Em tempos de paz, parece que os corvos estão avisando uns aos outros sobre algo com seus gritos. Agora parecem avisar os moradores de Kiev.

Há alguns dias, vários corvos na praça Lviv gritaram tão alto e de forma tão animada que outros transeuntes e eu paramos e olhamos para cima, por um longo tempo, na direção das copas das árvores despidas pelo inverno, de onde grandes pássaros pretos faziam seus discursos roucos. Anteriormente, antes da guerra, os gritos dos corvos de Kiev me irritavam, mas agora eu os escuto com prazer. Eles me dão uma pausa.

Eles me distraem por um curto período de tempo da realidade em que vivo, da realidade em que toda a Ucrânia vive hoje. Provavelmente também sou como uma criança, esperando que alguém me diga: "Acabou! Estamos seguros! Obrigado por ser tão corajoso e forte! Ouvimos tantas explosões, mas superamos isso! Não tivemos medo!"

Carta da Ucrânia é um projeto da campanha latino-americana de solidariedade ¡Aguanta Ucrania!, com apoio do PEN Club - Ukraine, ONG que reúne escritores, jornalistas e tradutores, entre outros.

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