Senado da França aprova lei para incluir direito ao aborto na Constituição

Medida do governo Macron é resposta à criminalização da prática nos EUA; projeto deve voltar ao Parlamento

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São Paulo

O Senado da França aprovou uma lei nesta quarta-feira (28) que torna a interrupção da gravidez um direito constitucional no país europeu, medida que era uma promessa do presidente Emmanuel Macron depois que o direito ao aborto foi derrubado a nível federal nos Estados Unidos.

O aborto é descriminalizado na França desde 1975, e as mulheres podem se submeter ao procedimento até a 14ª semana de gravidez, mas a prática não tinha proteção constitucional, o que a colocava sob risco de ser derrubada pela Justiça.

Foi justamente essa possibilidade que mobilizou o governo Macron, que apresentou o projeto ao Legislativo em outubro do ano passado. O texto citava explicitamente a revogação do direito à interrupção da gravidez pela Suprema Corte americana em junho de 2022, que derrubou uma decisão de 1973 conhecida popularmente como Roe vs. Wade.

Foto mostra visão do parlamento de cima: estátuas de mármore podem ser vistas acima da mesa da presidência, de madeira escura, e do púlpito. Ao redor dele, dezenas de homens e mulheres estão sentados em mesas que formam um semicírculo.
Senado da França durante votação para incluir direito ao aborto na Constituição do país - Stephane de Sakutin - 28.fev.2024/AFP

Depois da votação do Senado, Macron disse que seu governo está comprometido com "tornar irreversível o direito das mulheres de abortar", e chamou a aprovação de "um passo decisivo que me alegra". A medida passou pela Casa com um placar de 267 senadores a favor e 50 contrários, com grande maioria do partido de Macron e dos partidos de esquerda franceses se unindo para aprovar a lei. Cerca de 30 senadores se abstiveram ou não estavam presentes.

A Assembleia Nacional da França, Câmara baixa do Parlamento, tinha aprovado com ampla maioria incluir o direito ao aborto na Carta Magna em janeiro desse ano em uma votação. Se o Senado tivesse votado emendas ao projeto, ele precisaria voltar à Assembleia —mas, como não houve mudanças, a medida depende agora apenas de uma maioria de três quintos em sessão conjunta do Parlamento, o que deve acontecer na próxima segunda-feira (4).

O primeiro-ministro francês, Gabriel Attal, disse em uma publicação no X que "esse dia marcará a história política e parlamentar" da França. "Quando os direitos das mulheres estão sob ataque ao redor do mundo, a França se ergue ao seu lugar de vanguarda do progresso", escreveu.

Os parlamentares alteraram o artigo 34 da Constituição francesa para citar explicitamente "a liberdade da mulher de recorrer a um aborto, que é garantida". A Marcha pela Vida, um movimento antiaborto na França, realizou um protesto silencioso em Paris nesta quarta contra a inclusão da prática na Carta Magna, mas o apoio popular aos grupos autointitulados "pró-vida" no país europeu é bastante limitado.

Uma pesquisa divulgada pelo instituto Ifop em novembro de 2022, um mês depois da reversão do direito ao aborto nos EUA, mostrou que os franceses se diziam fortemente favoráveis a proteger a interrupção da gravidez na Constituição: 86% dos entrevistados afirmavam apoiar a tese.

Várias mulheres com mordaças na boca marcham em uma rua de Paris à noite. Em primeiro plano, uma delas ergue um cartaz de papelão onde se lê "liberdade de ser contra" em francês.
Manifestante segura cartaz com os dizeres "liberdade de ser contra" em francês durante uma manifestação antiaborto em Paris contrária à inclusão da interrupção da gravidez na Constituição - Kiran Ridley - 28.fev.2024/AFP

Na França, nenhum partido político se diz a favor de revogar a lei de 1975, aprovada em uma onda de legislações parecidas que descriminalizaram o aborto em países da Europa ocidental nos anos 1960 e 1970. Entretanto, alguns senadores reclamaram da pressa do governo para aprovar a matéria e tentaram adicionar restrições ao texto.

O senador Alain Milon, dos Republicanos, partido de direita, tentou incluir uma emenda na lei que garantiria uma "cláusula de consciência" para profissionais de saúde, defendendo que eles pudessem ter a liberdade de se recusar a realizar abortos. A mudança, se aprovada, também forçaria o texto a retornar à Assembleia Nacional para nova análise, mas foi derrotada por 219 votos a 85.

A derrubada da decisão Roe vs. Wade nos EUA motivou a aprovação da lei francesa e foi um choque na sociedade americana que reverberou em diversos países do mundo. A Suprema Corte reverteu 50 anos de aborto legal em todo o país e deixou a questão a cargo dos estados.

Alguns, governados pelo Partido Democrata, já garantiam o direito, como Nova York e Califórnia, enquanto outros, controlados por republicanos, eram tão contrários à medida que já tinham leis prontas para serem aprovadas assim que a corte constitucional mudasse de ideia —caso de Kentucky e Tennessee. Hoje, de acordo com o Centro para Direitos Reprodutivos dos EUA, 14 dos 50 estados americanos criminalizam a prática, e outros 10 têm planos nesse sentido.

Essa mudança foi resultado de décadas de pressão do movimento antiaborto naquele país, e aconteceu de forma turbulenta: em fevereiro de 2022, meses antes da decisão ser publicada, um funcionário do tribunal vazou o conteúdo decisão para o site Politico, algo que nunca havia acontecido antes.

O vazamento nunca foi explicado, e uma matéria do New York Times de dezembro do ano passado levantou a possibilidade de ter sido feito por uma pessoa ligada ao campo conservador para pressionar juízes indecisos a votar pela proibição do aborto.

Além disso, a mudança de opinião só foi possível depois que a Corte obteve uma supermaioria conservadora com a eleição de Donald Trump, que indicou três magistrados para o tribunal. Assim, os nove juízes ficaram divididos em 5 conservadores, 3 liberais e o presidente, John Roberts, que também é considerado conservador, mas oscila entre um e outro campo —e que votou contra a suspensão do direito em 2022.

No Brasil, o aborto é ilegal exceto em casos de estupro, quando há risco à vida da mãe, ou quando há anencefalia do feto.

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