Viagem à África tem desencontros, irritação de Lula e nova crise com Israel

Presidente teve agenda errática e, ao comparar ações de Tel Aviv às de Hitler, voltou ao Brasil sob tensão diplomática

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Adis Abeba

A viagem de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao continente africano foi marcada por uma série de contratempos em agendas, que acabaram irritando o presidente brasileiro.

Além disso, a passagem por Cairo (Egito) e Adis Abeba (Etiópia) terminou com a polêmica fala comparando a situação na Faixa de Gaza com o Holocausto, que deu início a uma nova crise com Israel.

O presidente Lula discursa em cúpula da União Africana, na Etiópia
O presidente Lula discursa em cúpula da União Africana, na Etiópia - Ricardo Stuckert - 17.fev.24/Divulgação Presidência da República via AFP

Lula concluiu no domingo (18) uma viagem de cinco dias à África, com passagens por Egito e Etiópia. A ação militar de Israel na Faixa de Gaza foi o tópico central da viagem, constando em todos seus discursos, além de ser tema da maioria de suas reuniões bilaterais.

O presidente manteve o tom e padrão de suas falas no Brasil, com duras críticas ao que chama de "resposta desproporcional" de Israel, afirmando que o país tem "primazia em descumprir decisões da ONU".

No entanto, houve um cuidado para não ultrapassar certos limites para não retirar suas credenciais como um ator que busca influenciar as negociações para um cessar-fogo, tanto que a todo momento ele também condenou os atos do Hamas. Até que tocou no ponto mais sensível para o povo judeu.

"Sabe, o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus", afirmou o presidente, que também usou os termos "genocídio" e "chacina".

O tom da fala representou uma mudança de rumo em relação ao plano para a viagem. Estava certo que Lula seria duro com Israel, mas com cuidados retóricos, mesmo em ambientes pró-Palestina.

Um auxiliar no Palácio do Planalto havia apontado que Lula não poderia cruzar certos limites durante o discurso na Liga Árabe, porque a organização apresenta nuances. Egito e Qatar, por exemplo, são dois atores que estão envolvidos nas negociações para um cessar-fogo na Faixa de Gaza, em troca da liberação de reféns. Além disso, a Arábia Saudita tem se aproximado de Israel e é forte interlocutora dos Estados Unidos na região.

Auxiliares de Lula dão versões diferentes nos bastidores a respeito da fala sobre o Holocausto. Enquanto uns apontam deslize do presidente, outros veem uma forma de trazer ainda mais para o debate internacional a situação na Faixa de Gaza, onde quase 30 mil palestinos morreram, segundo o Ministério da Saúde local, controlado pelo Hamas.

Estes também argumentam que Lula não banalizou o Holocausto nem reduziu sua dimensão; simplesmente elevou a classificação do que está acontecendo em Gaza. E que a fala, embora polêmica, está em linha com a posição do governo, que subscreveu, por exemplo, a ação movida pela África do Sul na CIJ (Corte Internacional de Justiça) contra Tel Aviv.

Certo é que a fala de Lula pegou de surpresa alguns membros da sua equipe, inclusive da área internacional. Também é lembrado o fato de que a declaração se deu após uma imersão de vários dias com interlocutores mais ligados ao lado árabe e pró-Palestina, que trouxeram novos fatos e visões para o presidente. Ele teve uma longa reunião com o ditador do Egito, Abdel Fattah al-Sisi, com o secretário-geral da Liga Árabe, o egípcio Ahmed Aboul Gheit, e também se encontrou com o primeiro-ministro da Autoridade Nacional Palestina, Mohammad Shtayyeh. Deste, ouviu os relatos da tragédia no campo, que terminou com a frase: "Se isso não é genocídio, não sei o que é".

Além da situação em Gaza, os principais objetivos de Lula no continente eram reconstruir pontes para comércio e exportação de serviços e angariar apoio e união em torno do chamado Sul Global para as reformas das instituições financeiras mundiais –o que vem sendo a tônica da presidência brasileira do G20.

Lula foi muito aplaudido ao tocar nesses temas em seu discurso na abertura da cúpula da União Africana, em particular ao defender o perdão da dívida dos países africanos com o FMI (Fundo Monetário Internacional). O objetivo é que o pagamento das parcelas e juros se transforme em investimentos para o desenvolvimento desses países.

Palavras e projetos de cooperação são bem recebidos pelos líderes africanos, mas todos são pragmáticos ao darem prioridade aos investimentos diretos e repasses de recursos. Símbolo dessa visão é o prédio da União Africana, onde Lula discursou, que foi construído pela China —Pequim tem investido cada vez mais no continente para tentar expandir sua influência regional.

Lula antecipou em um dia a sua ida do Egito para a Etiópia para se encontrar com o primeiro-ministro Abiy Ahmed –ganhador do prêmio Nobel da Paz de 2019 e agora acusado de genocídio contra rebeldes.

O restante de sua sexta-feira (16), no entanto, foi marcado por uma série de cancelamentos de reuniões que aconteceriam no hotel em que Lula estava hospedado. O presidente não foi recebido por representantes de países como Nigéria e Quênia e por figuras como o presidente do Banco Africano de Desenvolvimento, que alegaram problemas logísticos.

Além disso, ele cancelou sua ida a evento da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), pois líderes africanos que também participariam foram convocados para uma reunião de emergência para tratar do conflito na República Democrática do Congo.

A equipe de Lula minimizou esses desencontros, afirmando que ele chegou mais cedo a Adis Abeba para o encontro com o primeiro-ministro etíope e que os demais compromissos foram tentativas de otimização da agenda.

No dia seguinte, houve o cancelamento do secretário-geral da ONU, António Guterres, que nem chegou a ir a Adis Abeba. E os atrasos da cúpula africana atropelaram a reunião bilateral que o Brasil teria com Moçambique.

Auxiliares apontam que o presidente ficou irritado com a situação, pois esperava uma recepção diferente. Decidiu, então, não comparecer ao jantar promovido pelo primeiro-ministro etíope para os chefes de Estado que participaram da cúpula da União Africana.

A última manhã de Lula na capital da Etiópia mostrou-se o período mais proveitoso de reuniões bilaterais. Das três prioridades de agendas esboçadas ainda em Brasília, apenas o encontro com o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, não se confirmou.

O país é o maior devedor do Brasil no continente africano, com um débito de US$ 143 milhões. O governo Lula trabalha em um plano de renegociação da dívida dos países africanos.

Por outro lado, o presidente conseguiu enfim se encontrar com os representantes dos outros dois países prioritários: Nigéria e Quênia. Com o primeiro, discutiram formas de energizar a relação e retomar o patamar de comércio, que chegou a US$ 10 bilhões por ano e agora está em um décimo disso.

A passagem por Adis Abeba então parecia completa após os tropeços iniciais. Veio a fala sobre o Holocausto, e Lula embarcou de volta a Brasília trazendo uma crise diplomática.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.