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Depoimento: Vivi os atentados de Madri de perto e não recomendo

Morava bem na frente da estação em que terroristas da Al Qaeda explodiram dois trens no dia 11 de março de 2004

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São Paulo

Não sei se isso é comum em outras profissões, mas entre jornalistas certamente a vontade de viver de perto um momento histórico, daqueles que vai ser ensinado em sala de aula, é frequente. Eu tinha. Em 2001, quando ocorreram os atentados de 11 de setembro nos EUA, eu ainda não era formado, e —para além da tragédia humana— só conseguia pensar em como aquilo seria o ápice da carreira de quem estava cobrindo.

Corta para 2004. Eu era um recém-graduado em jornalismo e ganhei uma bolsa da Fundación Carolina, que fomenta a cooperação científica e acadêmica entre a Espanha e os países da Ibero-América, para fazer uma pós-graduação em telejornalismo em Madri. O curso era um sonho, além das aulas com profissionais de mercado —a atual rainha do país, Letizia, que foi apresentadora de TV antes de se casar com Felipe 6º, era professora até anunciar o noivado real, no ano anterior—, incluía um estágio prático na TVE, a televisão pública espanhola.

Com os aluguéis nas alturas na capital espanhola, a maioria dos bolsistas procurava repúblicas para morar. Meu foco, quando estava procurando, era que fosse perto da estação de Atocha, a principal estação ferroviária de Madri, concentrando metrô, trens de cercanías (a CPTM deles) e até os de longa distância. Isso porque o campus da faculdade ficava na região metropolitana, e pegar o trem sem precisar fazer muitas baldeações, facilitaria o meu dia a dia.

Fachada da estação de Atocha, em Madri
Fachada da estação de Atocha, em Madri - Vitor Moreno/Folhapress

Para minha sorte, consegui uma vaga em um apartamento que ficava de frente para uma das laterais da estação, bastava atravessar a rua e já era possível se perder naquele emaranhado de trilhos e pessoas indo e vindo. Eu dividia apartamento com três espanhóis e, ultimamente, o clima não estava muito bom. Um dos rapazes tinha pisado na bola e as discussões sobre como conviver debaixo do mesmo teto eram constantes.

É por isso que, quando ouvi as vozes alteradas dos colegas de apartamento naquela manhã de 11 de março, achei que era só mais um desentendimento doméstico. Fiquei caladinho, na cama, tentando entender o que estavam falando, quando alguém bateu na porta, enfiou a cabeça para dentro e falou: "Aconteceu alguma coisa na estação, parece que explodiu algo".

Corremos para a sacada, mas, ao menos daquele ângulo, ainda não parecia haver nada de diferente. Ligamos a TV e, aos poucos, as informações iam chegando. Incrédulos, descobrimos que de fato haviam ocorrido explosões e que pelo menos dois trens tinham sido atingidos. O número depois subiria para quatro, em outras localizações.

As imagens eram assustadoras. Pessoas sendo carregadas, destroços por todos os lados. Enquanto isso, todo mundo tentava falar com os respectivos amigos e familiares, perguntando se estavam a salvo, checando se não estavam em um dos trens. Pensei em ligar para os meus pais, no Brasil, para avisá-los que estava tudo bem comigo, mas com a diferença de fuso horário iria acordá-los no meio da madrugada, o que talvez os assustasse ainda mais.

Horas depois, descobri pelo meu pai que, aqui no Brasil, os atentados já estavam sendo atribuídos à Al Qaeda, a mesma organização terrorista que organizou os atentados de 11 de setembro. Na mídia local, repercutia-se que eles teriam sido perpetrados pelo ETA, o movimento separatista do basco. As explosões ocorreram apenas três dias antes das eleições gerais daquele ano, e falava-se em uma tentativa de tumultuar o pleito. No final, ficou comprovado que se tratou mesmo de uma retaliação ao apoio da Espanha às guerras do Iraque e do Afeganistão.

Para quem está na frente da estação naquele momento, isso é o que menos importa. As ruas logo foram fechadas e fomos avisados de que não poderíamos deixar o apartamento e, se o fizéssemos, não poderíamos retornar. Nessa altura, olhar pela janela já era ver corpos estendidos sob mantas térmicas metalizadas e o barulho dos helicópteros sobrevoando o prédio (morávamos no último andar) era ensurdecedor.

Esqueça tudo o que você viu em filmes e as reações heroicas que você imagina que teria em um momento assim. A não ser que você seja profissional de saúde, muito provavelmente não vai conseguir ajudar. O melhor a fazer é tentar não atrapalhar. Mas fica a frustração e a impotência de não ter como fazer nada em relação a todo o horror que está se desenrolando na sua frente.

Aos poucos, as coisas foram se "normalizando" (entre muitas aspas) e, na primeira oportunidade, fui caminhando para a casa de amigos que moravam em outro bairro. No dia seguinte, participamos de uma marcha que reuniu 11 milhões de pessoas nas ruas de Madri para protestar contra o terrorismo e pedir paz.

Pegar o trem, dias depois para ir à faculdade, naquela mesma Atocha que tinha virado cenário de guerra havia pouco, foi uma mistura de muitas sensações. De medo e incerteza, certamente, mas também de alívio em poder seguir a vida após dias tão dramáticos. Sorte dos que puderam.

Passados 20 anos, é difícil não pensar nas quase 200 vidas interrompidas e nos cerca de 2.000 feridos que saíam de suas casas para trabalhar normalmente naquele que entraria para a história como o maior atentado terrorista da Espanha. E, desde então, sobre viver assim tão de perto grandes momentos históricos, só digo aos interessados que não recomendo.

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