Descrição de chapéu Mundo leu

Documentário mostra que Guerra Fria não é apenas um marco no passado

Produção da Netflix defende que Guerra da Ucrânia é prolongamento da disputa entre EUA e União Soviética

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Foi em 1980. O telefone tocou de madrugada e acordou Zbigniew Brzezinski, o principal assessor do então presidente Jimmy Carter. Do outro lado da linha o coronel Bill Odom informou que 200 mísseis com ogivas nucleares haviam sido disparados pela Rússia e em questão de minutos destruiriam os Estados Unidos.

Antes de acordar o presidente, Brzezinski pediu para que o militar fizesse uma nova ligação para confirmar que o mundo estava acabando. Novo telefonema. Era alarme falso. O alerta foi disparado por um chip defeituoso de 40 centavos de dólar no computador dos serviços de inteligência.

Discurso televisionado do à época presidente dos EUA, John F. Kennedy sobre a Crise dos Mísseis de Cuba, parte de uma exposição intitulada “To the Brink: JFK and the Cuban Missile Crisis” (À beira do abismo: JFK e a crise dos mísseis cubanos, em portugês) na biblioteca John F. Kennedy em Boston - Brian Snyder - 18.dez.14/Reuters

O episódio é narrado em "Ponto de Virada: a Bomba e a Guerra Fria", documentário em nove episódios, dirigido pelo americano Brian Knappenberger e que está no catálogo da Netflix.

A Guerra Fria opunha com equilíbrio os Estados Unidos à União Soviética. Os americanos chegaram a ter 30 mil bombas nucleares, e os russos, 40 mil. As duas superpotências terceirizavam seus conflitos e não se enfrentavam diretamente.

O documentário é caudaloso, com mais de uma hora em cada episódio. E traz como originalidade a crença de que a atual guerra na Ucrânia ainda é um prolongamento da velha Guerra Fria.

Em sua longa extensão histórica, a bomba foi o ingrediente central da tensão que opunha americanos e soviéticos. Os Estados Unidos saíram na frente. Mas em 1949 Moscou anunciava seu primeiro teste nuclear, o que em princípio deixava os dois países em condições de igualdade.

O documentário acredita de modo implícito que Joseph Stálin tinha cientistas em quantidade suficiente para chegar à bomba. Não precisava que espiões lhe entregassem informações geradas por cientistas americanos.

Mesmo assim, as narrativas de espionagem foram um dos principais componentes ideológicos daquele período. A começar pelo casal Julius e Ethel Rosenberg, filiados ao Partido Comunista americano e que foram executados na cadeira elétrica após acusação de espionagem em 1953. Ou então, ainda nos Estados Unidos, a histeria anticomunista do senador Joseph McCarthy, que se perdeu ao tentar identificar militares comunistas supostamente infiltrados no Pentágono.

Outro episódio do documentário discorre com riqueza sobre o momento em que a Guerra Fria correu seriamente o risco de se aquecer e virar conflito de verdade. Foi a crise dos mísseis em Cuba, em 1962. O então presidente John Kennedy reagiu com um cerco à ilha ao plano de Nikita Kruschev de instalar mísseis nucleares apontados para os Estados Unidos.

Os soviéticos acabaram recuando, em troca do compromisso sigiloso de Washington de retirar mísseis de médio alcance instalados pela Otan, a aliança militar ocidental, na Turquia. Fidel Castro não participou dessas negociações. Ele e Che Guevara acreditavam que o Kremlin dera aval para que os EUA invadissem a ilha e derrubassem o regime comunista. Não foi o que aconteceu.

Em nenhum momento o documentário se coloca como equânime entre as duas forças em confronto. Ao contrário, toma abertamente o partido do Ocidente e pinta com cores muito fortes os enganos que o comunismo cometeu, desde a fome na Ucrânia, em 1932, à insistência de Kruschev em alardear um arsenal atômico que em verdade nunca chegou a ter.

Os soviéticos são objeto de uma constante desconfiança, apenas aliviada quando as circunstâncias chegaram bem mais a juntar do que a opor o presidente Ronald Reagan e o dirigente que colocou um ponto final no comunismo, Mikhail Gorbatchov.

Aliás, perguntaram anos depois a ele se, na noite de 9 de novembro de 1989, o Kremlin reagiria à queda do Muro de Berlim. "É coisa da soberania dos alemães. Que ninguém se meta com eles", respondeu.

Os 30 minutos que narram a queda do muro são os mais fortes e comoventes. Demonstram o quadro caótico que foi criado por uma circunstância que não estava prevista em nenhum protocolo político.

Tudo começou quando, por engano, o dirigente da Alemanha Oriental afirmou em entrevista coletiva que seus compatriotas poderiam, se quisessem, circular pelo setor ocidental da cidade. Um grupo inicial de 20 alemães tentou verificar se era verdade. Os guardas lhes tomaram os documentos e os "expulsaram" para Berlim Ocidental. Em duas horas já eram milhares a fazer o mesmo. Como é bonito recapitular as pessoas chorando de felicidade pelo que seria a reunificação alemã.

Um pequeno fato enriquece mais ainda o documentário: um casal quis checar se o muro havia caído e deu uma voltinha pelas ruas de Berlim Ocidental. Depois quis voltar para casa porque havia deixado um bebê dormindo. Os guardas comunistas ralharam e permitiram a volta. O bebê recebeu sua mamadeira.

Ponto de Virada: a Bomba e a Guerra Fria

  • Direção Brian Knappenberger
  • Duração 1 temporada, 9 episódios
  • Disponível em Netflix
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.