Descrição de chapéu Rússia Itamaraty

Espião russo passou por institutos de energia nuclear e defesa em universidades

Série de publicações foi apagada, mas agente deixou registros de onde esteve enquanto tentava criar rede de informantes

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Brasília

O russo Serguei Chumilov, identificado pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência) como espião, deixou rastros na internet de sua participação em eventos de universidades brasileiras que indicam quais eram suas áreas de interesse.

Como mostrou a Folha, Chumilov saiu do Brasil em julho de 2023 após a Abin apontá-lo como um espião sob o disfarce de integrante da embaixada russa em Brasília e representante no Brasil da agência federal russa Rossotrudnichestvo, responsável por "Assuntos de Colaboração com a Comunidade de Estados Independentes, Compatriotas no Estrangeiro e Cooperação Humanitária Internacional".

As informações sobre a descoberta do espião foram confirmadas à Folha por funcionários do Ministério das Relações Exteriores e do governo.

Procurada, a Abin informou que não nega e nem comenta casos de contraespionagem. O Itamaraty afirmou que monitora, mas "não comenta publicamente casos dessa natureza por seu caráter sigiloso". A Embaixada da Rússia em Brasília afirmou que não iria comentar o caso.

O russo Serguei Chumilov, apontado como espião pela Abin, em uma palestra realizada por uma escola de idiomas
O russo Serguei Chumilov, apontado como espião pela Abin, em uma palestra realizada por uma escola de idiomas - Reprodução

Vídeos, postagens em redes sociais, participações em lives e palestras mostram como o russo transitava na capital federal e em diversos locais do país. Na maioria do eventos, o espião apresentava a estudantes e acadêmicos oportunidades de bolsas de estudo e intercâmbio na Rússia.

Chumilov, de acordo com os relatos obtidos pela reportagem, valia-se desse trânsito para cooptar brasileiros para sua rede de informantes. Seus alvos mantinham relações com temas de interesse da missão que o espião desempenhava no país. A Folha buscou os rastros deixados pelo russo em fontes abertas, embora parte desses registros tenha sido apagada.

Na página da Casa Russa [vinculada à Rossotrudnichestvo] no Brasil no Facebook, por exemplo, as publicações entre 6 de abril de 2019 e 13 de novembro de 2023 foram totalmente deletadas. O período coincide com o que Chumilov teria desenvolvido suas atividades de espião disfarçado de representante oficial da agência no Brasil.

Mesmo com o desaparecimento dessas postagens, no entanto, foi possível encontrar outras informações espalhadas pela rede. Esses registros mostram, por exemplo, a participação de Chumilov em um evento realizado em 2021 no Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares), autarquia vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico do governo de São Paulo e gerida pela CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear), órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.

O Ipen fica na Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista, e, segundo sua própria descrição, atua em "vários setores da atividade nuclear", como "aplicações das radiações e radioisótopos, em reatores nucleares, em materiais e no ciclo do combustível, em radioproteção e dosimetria".

Em seu site oficial, o O Ipen afirma que os resultados de estudos nessas áreas "vêm proporcionando avanços significativos no domínio de tecnologias, na produção de materiais e na prestação de serviços de valor econômico e estratégico para o país".

Chumilov participou do evento ao lado de Everton Rocha, à época funcionário da Rosatom América Latina, que é a Companhia Estatal de Energia Nuclear da Rússia. Naquele momento, a Rosatom oferecia cinco vagas de intercâmbio para alunos do Brasil.

"A Rossotrudnichestvo e a agência viabilizam o processo de aplicação para as vagas da Rosatom e as demais vagas oferecidas nas universidades da Rússia", afirmava o texto de divulgação do evento.

A Folha falou com a diretora do Ipen, Isolda Costa, e com Francisco Rondinelli, presidente da CNEN. Os dois disseram desconhecer qualquer tentativa de cooptação do russo e argumentaram que nas estruturas do instituto ele não teria acesso a informações estratégicas e sensíveis.

Isolda afirmou que é uma "coisa surreal, receber uma pessoa que é espião disfarçado de adido cultural".

Rondinelli, por sua vez, disse que o contato de Chumilov com o Ipen foi pontual, somente na palestra em dezembro de 2018, e, assim como Isolda, disse que o russo não teria acesso a informações estratégicas nas estruturas do instituto.

"Ele pode ter feito o papel dele de fazer prospecção. O que posso falar com tranquilidade é que em qualquer estrutura do Ipen ou da CNEN ele não teria acesso a nenhuma atividade estratégica do país", afirma Rondinelli.

Em outro evento, em outubro de 2019, Chumilov foi até o Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) onde, além de apresentar as oportunidades de estudo na Rússia, falou sobre o Brics, bloco do qual Rússia e Brasil fazem parte.

Sobre as vagas de estudo, como reportou o site da agência de notícias russa Sputnik, afirmou que a agência que ele representava tinha um nome difícil de se pronunciar pelos brasileiros, mas indicou que ela tinha "projetos muito interessantes de soft power e integração".

"No Jovem Líderes, por exemplo, selecionamos figuras de destaques em áreas como ciência e política para conhecer a Rússia", disse Chumilov, ainda segundo a agência de notícias.

Em setembro de 2021, o espião apresentou a palestra "Sistema nacional de inovação: o caso da Rússia" em um evento do Programa de Pós-Graduação em Propriedade e Transparência de Tecnologia para Inovação da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

A UFSC não respondeu ao contato da reportagem.

Folder com informações sobre evento em que o espião russo Sergey Shumilov participou na Universidade Federal de Santa Catarina
Folder com informações sobre evento em que o espião russo Sergey Shumilov participou na Universidade Federal de Santa Catarina - Reprodução

Um vídeo hospedado no YouTube mostra Chumilov em 2022 apresentando as oportunidades de estudos e vagas em universidades russas em um evento virtual organizado por uma escola de idiomas. Assim como nos outros casos, ele se apresenta como representante da Casa Russa e dá detalhes da burocracia, dos trâmites e dos custos do intercâmbio para estudos na Rússia.

No mesmo ano, ele também participou de um evento no Diretório de Relações Internacionais do Ceub (Centro Universitário de Brasília), na capital federal.

No vídeo, o apresentador informa o currículo de Chumilov, que teria passado por empresas privadas e públicas na Rússia (entre 2011 e 2014), sido representante comercial da Rússia no Brasil (2014 a 2017) e, a partir de 2018, representante da Rossotrudnichestvo no país.

Ainda segundo Chumilov , a Casa Russa naquele ano oferecia em média 50 bolsas para brasileiros. "Eu posso dizer que a demanda é muito alta e muitos brasileiros procuram educação na Rússia, porque a educação na Rússia é muito competitiva e nossas universidades estão na lista das melhores do mundo", disse ao iniciar a palestra.

Em nota, o Ceub afirmou que "as atividades dos diretórios acadêmicos são realizadas de forma independente, sem qualquer tipo de envolvimento ou interferência institucional".

Chumilov entrou no Brasil, segundo informações do Itamaraty, para desempenhar a função de 1º secretário na Embaixada na capital federal. Além do posto, ele se identificava como representante da Rossotrudnichestvo.

A agência fica dentro da estrutura do ministério de Assuntos Exteriores da Rússia, comandado por Serguei Lavrov, que esteve no Brasil e se reuniu com Lula (PT) em fevereiro deste ano.

A saída do espião do Brasil, em julho de 2023, ocorreu após pedido do governo russo. Os relatos obtidos pela Folha são de que, após a Abin descobrir sua real atividade, houve uma articulação diplomática para que o próprio país pedisse sua saída.

Nesses casos, é comum que esse procedimento seja realizado com discrição para evitar "constrangimentos diplomáticos", segundo integrantes do Itamaraty.

O espião se valia do disfarce de diplomata para criar uma rede de fontes humanas que de alguma forma poderiam fornecer informações sobre determinados setores ou temas aqui do Brasil de interesse do "patrocinador" do espião, no caso o governo russo.

A Abin informou o Itamaraty sobre como se dava essa atuação, os alvos preferenciais e como essa atuação era de longo prazo, de modo a estabelecer e ampliar essa rede de pessoas com acesso a informações.

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