Descrição de chapéu Financial Times Chile

Gangue da Venezuela se expande e agrava crise de violência no Chile

Tren de Aragua está por trás de sequestros, assassinatos e operações de tráfico sexual no país, até então um dos mais seguros da região

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Ciara Nugent
Santiago | Financial Times

O grandioso edifício Portal Fernández Concha já foi um hotel elegante no centro de Santiago. Agora, a propriedade do século 19 na capital do Chile se tornou símbolo de uma onda de crimes impulsionada por gangues no país —um dos mais seguros e desenvolvidos da América Latina.

À medida que a facção Tren de Aragua, da Venezuela, aumentou sua influência no país nos últimos cinco anos, quartos alugados no prédio foram supostamente transformados pela organização criminosa em uma base para uma rede de tráfico sexual.

Dois homens vestidos de vermelho são carregados pela polícia.
Membro do Tren de Aragua é detido em Lima, no Peru - Cris Bouroncle - 5.out.23/AFP

A polícia disse ter desmantelado a operação no ano passado. Mas, há poucos dias, mulheres jovens ainda eram vistas abordando homens que passavam na praça em frente ao hotel.

"No auge, havia 1.500 pessoas entrando todos os dias", disse um segurança do prédio. "Eu via brigas de faca do lado de fora na maioria das semanas. Nunca tinha testemunhado nada parecido."

Especialistas dizem que o Chile se tornou alvo de grupos do crime organizado depois da pandemia, quando estas facções passaram a adotar modelos de negócios menos ligados aos seus territórios de origem. Células em diferentes países atuam de maneira autônoma ao mesmo tempo em que se comunicam com sua base e assumem trabalhos por encomenda.

O Tren de Aragua, formado em uma prisão venezuelana em 2014, tem sido um dos grupos com mais êxito dentro desse modelo. Em certa medida, devido ao êxodo de cerca de 7,7 milhões de refugiados da crise econômica em seu país, que expandiu o número de pessoas pobres, desempregadas e vulneráveis à exploração.

Peru, Equador e Colômbia também relataram a presença de células do Tren de Aragua, mas a falta de concorrência de outros grupos criminosos e a relativa riqueza do Chile tornaram o país um alvo especialmente interessante.

"O Tren de Aragua e outros grupos estrangeiros viram uma grande oportunidade de negócios no fluxo de pessoas vulneráveis em direção ao país", diz Ignacio Castillo, diretor de crime organizado do Ministério Público do Chile. "Eles mudaram fundamentalmente a natureza do crime no Chile."

A taxa de homicídios na nação foi de 4,5 por 100 mil habitantes em 2023, quase o dobro da de 2019 —mas ainda muito abaixo dos 19,5 por 100 mil registrados no Brasil em 2022 . No ano passado, o Chile perdeu seu posto de país com a menor taxa de homicídios da região para El Salvador, onde uma onda de repressão às gangues locais guiada pelas políticas do presidente Nayib Bukele reduziu drasticamente a violência. Sequestros, extorsões e tráfico de pessoas também aumentaram, segundo Castillo.

O temor em relação às facções transformou a política local. Sete em cada dez chilenos dizem que o crime é sua principal preocupação atual, de acordo com uma pesquisa da Ipsos de março. O tema tem minado a popularidade do presidente de esquerda Gabriel Boric, mesmo que seu governo trabalhe para fortalecer a política de segurança.

Em uma tarde recente em Maipu, um subúrbio de Santiago, era possível ouvir o ritmo de salsa tocando em uma das centenas de casas improvisadas que ficam sob um viaduto. Elas abrigam principalmente migrantes haitianos e venezuelanos.

Em março, um corpo foi encontrado ali, escondido em uma mala e enterrado sob cimento. Era o cadáver de Ronald Ojeda, ex-soldado venezuelano e crítico do regime autoritário do ditador Nicolás Maduro.

O Ministério Público do Chile disse que o Tren de Aragua estava por trás do assassinato. O órgão declarou que a morte tinha sido planejada na Venezuela e provavelmente tinha motivação política.

O chanceler de Maduro respondeu afirmando que a gangue "não existe", o que desencadeou uma crise diplomática entre Santiago e Caracas.

Assentamentos de migrantes semelhantes ao visto em Maipu surgiram em todo o Chile, já que o Estado não tem conseguido absorver milhares de recém-chegados. A população estrangeira no país passou de apenas 1,8% em 2013 para 13% em 2023.

"O Estado perde o controle nessas áreas, e há uma geração de jovens que não têm acesso à educação, saúde e emprego", afirma Claudio González, diretor do Centro de Estudos de Segurança Cidadã da Universidade do Chile. "É um terreno fértil para grupos criminosos."

Pesquisas mostram que o medo do crime organizado tem fomentado um sentimento xenofóbico. Mas González diz que as principais vítimas das organizações criminosas são, na verdade, os próprios migrantes. Casos de crimes violentos de gangues contra nativos são "muito excepcionais".

Um voluntário que trabalha com crianças em um projeto de arte comunitária no assentamento e que não quis se identificar porque também presta serviços ao governo afirmou que as autoridades haviam realizado apenas intervenções isoladas, como a criação de clínicas de saúde temporárias, e não conseguem atender aos migrantes sem documentos. Segundo ele, ao tratar essas comunidades como problema de segurança em vez de priorizar a qualidade de vida, o governo não conseguirá mudar o cenário.

O Tren de Aragua difere drasticamente de outras facções conhecidas na América Latina, como os cartéis do México, afirma Ronna Rísquez, jornalista venezuelana que publicou um livro sobre a gangue. "Aqueles grupos são militarizados e [tendem a permanecer em] territórios fixos, enquanto o Tren de Aragua é mais fluido", diz Rísquez, que estima em no máximo 3.000 pessoas o total de integrantes do grupo. A organização aceita serviços encomendados, como assassinatos ou transporte de drogas para outras gangues.

A chegada do crime organizado no Chile, combinada com um conflito com grupos indígenas separatistas no sul, colocou a segurança no topo da agenda política a um ano das eleições presidenciais.

A situação tornou-se uma grande dor de cabeça para Boric, que esperava expandir a rede de segurança social e as proteções de direitos humanos do Chile, mas foi forçado a focar a segurança.

Depois de ter prendido cerca de cem membros do Tren de Aragua, segundo autoridades, o país se prepara para o primeiro julgamento em massa do grupo na região, com 38 pessoas —34 venezuelanos e quatro chilenos— que responderão por assassinato, sequestro, tráfico de pessoas e de drogas.

O país não está, no entanto, imune à corrupção institucional que permite a expansão do crime organizado. Em abril, a mídia chilena relatou que dois membros da polícia investigativa nacional serviram de informantes para o Tren de Aragua.

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