Eleitor da Europa pede proteção contra ameaças, diz ex-premiê da Itália

Para Enrico Letta, é preciso responder à demanda e depois ver se votos premiarão direita ou esquerda no Parlamento Europeu

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Milão (Itália)

O resultado da votação para o Parlamento Europeu estará ligado à percepção dos eleitores sobre a capacidade das forças políticas de responderem à necessidade de proteção, um sentimento dominante que permeia todos os países do bloco. A afirmação é do ex-primeiro-ministro italiano Enrico Letta, atual presidente do Instituto Jacques Delors, em Paris.

Desde quinta-feira (6) e até este domingo (9), cerca de 370 milhões de pessoas em 27 países podem votar para escolher quem vai ocupar os 720 assentos da próxima legislatura europeia.

O ex-premiê italiano Enrico Letta participa de uma cúpula de líderes da União Europeia em Bruxelas - Johanna Geron - 18.abr.24/Reuters

Segundo Letta, proteção é a palavra-chave deste momento na Europa, especialmente contra ameaças externas, em relação à invasão russa na Ucrânia, mas também às fronteiras do mar Mediterrâneo, sujeitas a fenômenos migratórios. E proteção também diante da perda de competitividade do bloco no mercado global.

"As pessoas pedem proteção, e então veremos o que vai sair das urnas, se esse pedido de proteção vai premiar mais partidos de direita ou de esquerda", disse em entrevista à Folha.

Esquivando-se de comentar possíveis resultados, como os bons desempenhos dos partidos de Marine Le Pen, na França, e de Giorgia Meloni, na Itália, Letta desconversa sobre tramas de bastidores que o apontam como próximo presidente do Conselho Europeu. "São só fofocas."

Como avalia a qualidade desta campanha e como acha que esta eleição vai entrar para a história?
Esta campanha é melhor do que aquela de cinco anos atrás. Em 2019, as palavras mais recorrentes eram brexit, frexit, italexit, dexit [em referência a movimentos que defendiam a saída da UE de países como Reino Unido, França, Itália e Alemanha]. Ou seja, depois daquele grande sucesso de comunicação com a palavra brexit, que virou uma marca, a campanha foi muito condicionada pela tendência dos grandes países europeus de fazerem a mesma coisa. Era o tema principal.

Hoje "os exit" saíram de cena. O que aconteceu nos últimos anos, com a crise da Covid-19, a invasão russa na Ucrânia e a crise energética, fez com que todos, à direita e à esquerda, dessem-se conta de que a União Europeia e a integração são insubstituíveis. Na campanha de agora todos discutem sobre modalidades pelas quais administrar a Europa, mas ninguém mais fala de sair dela. E isso é um enorme passo adiante.

As forças de ultradireita devem sair mais fortes das urnas, segundo as pesquisas. Como define este momento político na Europa, e quais são as causas?
É um período em que na Europa se sente, em todos os países, a necessidade de proteção. Esta é a palavra-chave. Proteção contra ameaças externas, pois tem uma grande parte da Europa que faz fronteira coma Rússia ou com a guerra. Tem uma parte que faz fronteira com o Mediterrâneo, onde a instabilidade política ligada a fenômenos de migração também é importante. E a Europa está perdendo competitividade. As pessoas pedem proteção, e então veremos o que vai sair das urnas, se esse pedido de proteção vai premiar mais os partidos de direita ou os de esquerda. O que é certo é que será preciso dar uma resposta a essa demanda.

Quais são as questões mais urgentes para UE nos próximos cinco anos?
São as três grandes despesas, novas necessidades, que a UE deverá financiar. A primeira é a transição verde e social. A segunda são segurança e defesa. A terceira é o alargamento do bloco. A primeira é certamente a mais importante. A transição terá custos muito altos, o Orçamento europeu é muito pequeno para isso, então serão necessárias medidas extraordinárias para cobrir esses custos.

E em relação à segurança?
Aqui o problema é que nos acostumamos a ter o guarda-chuva norte-americano. A Otan permanece como um ponto de referência e insubstituível, mas o problema é como ter condições de ter uma defesa mais integrada e uma Europa mais eficaz nessa área. É preciso ter mais integração, o que é outro objetivo difícil, porque existem muitas diferenças entre os países. Tem aqueles, como Polônia e Grécia, que gastam 4% do PIB em defesa, e outros como Itália, que gasta 1,3%. São coisas complicadas para administrar.

E a outra questão complicada é a ampliação do bloco. Os próximos dez anos serão de integração com países dos Bálcãs ocidentais, como Montenegro, Albânia, Bósnia, Sérvia, Macedônia do Norte e Kosovo, além da Ucrânia.

Na área da defesa, quanto o sr. está preocupado com o possível retorno de Donald Trump à Casa Branca?
Muito. Todas as coisas que eu disse até agora precisam de um contexto internacional estável e de alianças sólidas. Com os Estados Unidos do presidente Joe Biden se encontrou um modus vivendi que funciona. As ameaças de Trump são muito perigosas para o futuro das relações entre Europa e EUA. Confesso que estou e estamos muito preocupados. As eleições europeias são importantes, mas as dos EUA em novembro serão igualmente importantes.

O ex-premiê Mario Monti acaba de lançar um livro que fala de demagonia, ou seja de uma profunda crise da democracia nos países ocidentais. Para o sr., qual o estado atual da democracia dentro da UE?
A Europa vive certamente uma fase de dificuldade, mas que não é típica ou só sua. O mundo ocidental vive hoje uma fase de fadiga democrática evidente. Nestas eleições, o primeiro número que eu vou querer conferir será aquele da participação no voto. Espero que seja superior do que em 2019, quando se chegou aos 50%. Mas objetivamente é necessária uma renovação democrática forte.

Como fazer isso?
É preciso, acima de tudo, que haja uma capacidade de tornar a participação dos cidadãos algo que não dura somente um dia, na hora de votar. Tenho convicção de que é preciso introduzir novas formas de democracia participativa. Não basta ser uma democracia só representativa, como conhecemos até agora.

Que aspectos da Europa idealizada por Jacques Delors [ex-presidente da Comissão Europeia, morto em 2023] perderam força nos últimos anos?
A coisa principal é integrar aqueles mercados que ainda não estão integrados: energia, telecomunicações e serviços financeiros. São áreas fundamentais para a competitividade, as quais os países-membros disseram a Delors, em 1985, que deveriam ter a dimensão nacional, não europeia. Hoje estamos pagando o preço disso. Não temos um mercado europeu nesses três setores –temos 27 mercados fragmentados para cada um. Isso significa que o tamanho das empresas é muito pequeno, num mundo em que EUA, Brasil, Índia e China são enormes. A prioridade hoje é fazer o mercado único criado por Delors nesses setores.

Falando em Brasil, como vê hoje a perspectiva de um acordo entre UE e Mercosul?
Sou a favor de seguir em frente com as negociações. Tenho muita confiança no que o Brasil pode fazer no futuro e acho que devemos trabalhar muito nas relações entre Brasil e Europa. Acho que com o presidente Lula podemos encurtar essas distâncias. É uma das grandes escolhas estratégicas dos próximos anos.

A posição do presidente Lula sobre a Guerra da Ucrânia, de neutralidade, pode ser um obstáculo neste momento?
Bem, é óbvio que é uma posição diferente daquela europeia. Mas é uma posição com a qual devemos dialogar, justamente pela importância do papel que o Brasil tem.

Voltando às eleições. É preocupante para a UE ter um presidente como Emmanuel Macron, um proeminente defensor da integração, enfraquecido internamente, caso os resultados da pesquisas na França se confirmem?
Esperarei para comentar os votos, não as pesquisas. Mas me limito a dizer que Macron desempenhou um papel fundamental, é um dos grandes líderes europeus.

Como avalia o papel de Giorgia Meloni, cortejada seja por Ursula Von der Leyen, seja por Marine Le Pen?
Tem muita especulação nestes dias, vamos esperar o dia depois do voto.

Dá como certo o segundo mandato de Von der Leyen?
Ela é uma candidata forte, foi bem nos últimos cinco anos e fez uma boa campanha. Trabalhei muito bem com ela.

Nos últimos dias, jornais italianos falaram de seu nome como possível sucessor de Charles Michel no Conselho Europeu. O sr. está disponível para esse papel?
São só fofocas. Faço meu trabalho e só.


Raio-X | Enrico Letta, 57

Foi primeiro-ministro da Itália (2013-2014) e é o atual presidente do Instituto Jacques Delors, think tank em Paris dedicado a questões europeias. Foi presidente do Partido Democrático italiano (2021-2023), ministro em três ocasiões e eurodeputado. Está no sexto mandato como deputado federal.

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