A Copa do Mundo sempre exerceu entre nós um fascínio de enceguecer, mas este ano algo se quebrou.
Não vemos as ruas enfeitadas, as conversas inflamadas, a maciça venda de artefatos peculiares e a costumeira ansiedade.
Isso se deve à guerra semiótica travada entre dois grupos antagônicos, pejorativamente chamados de "coxinhas" e "mortadelas". Cada um se apropriou de determinadas simbologias e as definiu como suas: uns se afirmam de esquerda, cantam musicas de protestos, usam roupas vermelhas; outros se dizem de direita, cantam o hino nacional, vestem camisetas da CBF.
Para piorar, o golpe parlamentar de 2016 pôs fim a um projeto político nacional de enfrentamento da desigualdade, proposto desde o primeiro governo Lula.
Uma vez empossado, Michel Temer aprovou uma nociva reforma trabalhista, congelou o teto de gastos por 20 anos, extinguiu secretarias ligadas aos movimentos sociais e desencadeou o processo de privatização.
A isso se seguiu uma controvérsia que abalou definitivamente a imagem do nosso Judiciário e do STF: a prisão do ex-presidente Lula após o julgamento em segunda instância, considerada por muitos brasileiros e também por diversos órgãos internacionais de imprensa como uma prisão política.
Há quem diga que a prisão de Lula foi uma tentativa fraudulenta de retirá-lo das eleições de 2018, mas que teve um efeito contrário, já que diversos institutos de pesquisa têm revelado que Lula venceria em todos os cenários, porém seguido por Jair Bolsonaro, defensor do regime militar, de torturadores e que sempre faz comentários ofensivos a mulheres, gays, negros, quilombolas e índios.
Na guerra das simbologias, Bolsonaro e seus eleitores abocanharam a parcela que coube aos chamados "coxinhas" --o hino nacional e as cores do Brasil, que são também os símbolos da seleção brasileira.
O futebol e as Copas do Mundo são fatos hegemônicos no Brasil, que ofuscam conflitos, mazelas e diversas formas de opressão que nos atravessam.
Esse efeito é incalculavelmente potencializado por uma eventual vitória da seleção, com a grande mídia enquadrando a realidade à sua maneira para produzir comoção pública e definir o que há para ser pensado.
Eu prefiro que a política não desapareça do discurso público, que os políticos corruptos continuem a ter seus malfeitos rememorados, que estejamos atentos aos efeitos deletérios que determinadas escolhas políticas produziram e ainda vão produzir em nossas vidas e que a política não seja nublada pelos efeitos de um hexacampeonato.
Também acho positivo que se fale do potencial alienante da Copa e que se produza uma crítica social potente envolvendo política, futebol, CBF, mercado, mídia e Copas do Mundo.
Além disso, a Copa é a apoteose do patriarcado —um torneio em que todos os jogadores são homens, assim como os árbitros, os organizadores, os narradores e comentaristas, enquanto que as mulheres são sempre relegadas ao papel de musas e espectadoras. Isso sem falar no fato de que essa edição vai se realizar na Rússia, um país internacionalmente conhecido por sua perseguição e criminalização das práticas sexuais e afetivas das pessoas LGBT.
Ter a consciência disso nos faz melhores. Esse sentimento, esse nada de vontade, deve ser encarado com positividade, pois nos mantém atentos e fortes, cientes da importância política do momento e de que não temos nenhum tempo a perder com distrações inebriantes.
O desinteresse recorde do brasileiro pela Copa do Mundo pode ser um sinal positivo? SIM
Política, futebol e ideologia no Brasil
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